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Amor só como poesia

Navegos reproduz reportagem sobre a filha esquecida de Pablo Neruda que nasceu com hidrocefalia, publicada pelo mais importante jornalista cultural do Centro-Oeste, em Opção, importante e tradicional semanário que circula em Goiânia, em sua edição de número 2225 datada de 03 de março de 2018.

*Euler de França Belém

Malva Marina, a filha que o poeta Pablo Neruda abandonou e não quis ajudar, morreu aos 8 anos, numa cidade da Holanda

Os poetas cantam o amor, o real e o imaginário, de maneira extraordinária. Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto, conhecido como Pablo Neruda (1904-1973), Prêmio Nobel de Literatura de 1971, celebrou-o como poucos. Seus poemas líricos o imortalizaram mais do que os engajados. Mas, como ninguém é perfeito e às vezes se tem um lado “m” — de, vá lá, “malvado” —, o bar­do chileno “escondeu” uma história (e um comportamento), por assim dizer, nada lírica e constrangedora. Dirão, por certo: sua poesia ficará menor. Não. A poesia continua poderosa, ainda que às vezes “aguada” e palavrosa (nada comparável à magnífica poesia do maior poeta chileno, Vicente Huidobro), mas o cidadão se torna problemático — menos Deus e mais humano — e nada admirável. Há mesmo uma dissintonia entre o que se diz — o que se escreve — e o que se faz? No caso, sim.

A escritora holandesa Hagar Peeters descobriu a história de Malva Marina Trinidad Reyes Basoalto, uma menina que morreu aos 8 anos, e decidiu escrever um romance para revelar sua existência. “Malva” (Rey Naranjo, 240 páginas, tradução de Isabel Clara Lorda Vidal) saiu na Espanha, em fevereiro deste ano, e atraiu a atenção da imprensa. Porque é o registro da história da filha que Pablo Neruda abandonou e com a qual não quis nenhum contato. Não há previsão de lançamento do livro no Brasil.

O que se lerá a seguir é uma síntese da resenha “La higa madrilena a la que Pablo Neruda abandono y llamaba ‘vampiresa de 3 kilos’”, de Paco Rego, do jornal espanhol “El Mundo”. A história de Malva Marina ficou “escondida” durante 84 anos. Havia anotações, aqui e ali, mas nada tão forte quanto o livro de Hagar Peeters.

Livro conta a história da menina Malva Marina, que, com hidrocefalia, passou fome na Holanda e morreu criança

A escritora assinala que Pablo Neruda, além de ocultar a história, rejeitou Malva Marina, porque ela tinha hidrocefalia.

A bela Maria Hagenaar Vogelzang — Maruca (a Javanesa) — e Pablo Ne­ruda se casaram em Java (o poeta era côn­sul do Chile na ilha), em 1930. Foi sua primeira mulher. Aproveitavam a ju­ventude e estavam apaixonados. Quando Pablo Neruda teve de voltar para seu país, participando ativamente de farras com os amigos, Maruca rebela-se e, para não perdê-la, o poeta convence amigos influentes do governo a enviá-lo para Madri. Aí, dadas sua poética e sua capacidade de reunir novos amigos, se torna uma estrela do mundo cultural. Convive com prosadores, poetas, filósofos, artistas plásticos, cientistas, arquitetos. A vanguarda artística e científica europeia passa pela Espanha.

Promovido a cônsul geral, Pablo Neruda e Maruca vivem uma vida glamorosa, cercados da nata cultural da sociedade espanhola e europeia. O poeta organizava tertúlias constantes em sua casa. Entre os frequentadores estavam Federico García Lorca, Rafael Alberti e Vicente Aleixandre.

Homem do mundo, charmoso, poeta admirado, Pablo Neruda era mulherengo (Fernando Lizama Murphy sugere que o vate “padecia de satiríase” — desejo sexual exarcebado). Mas esperava-se que o nascimento de Malva Marina unisse mais o casal, que se amava. Porém a menina “nasceu com uma cabeça desproporcional, fruto de uma hidrocefalia que anunciava uma morte prematura, irremediável”. Depois de visitá-la, o poeta Vicente Aleixandre, amigo de Pablo Neruda, escreveu: “Uma criatura à qual não se podia olhar sem dor”. Maruca e Pablo Neruda moravam na Casa das Flores, residência arranjada por Rafael Alberti.

García Lorca saudou a menina: “Delfín de amor sobre las viejas olas,/Cuando el vals de tu América destila/Veneno y sangre de mortal paloma/Niñita de Madrid, Malva Marina,/No quiero darte flor nui caracola;/Ramo de sal y amor, celeste lumbre,/Pongo pensando en ti sobre tu boca”.

Inicialmente, Pablo Neruda parecia não ter consciência da “gravidade da enfermidade de sua filha”. Quando nasceu, firmou que a menina era “uma maravilha”. Vicente Aleixandre ouviu o poeta dizer: “Malva Marina, me vê? Vem, Vicente, vem! Olha que maravilha. Minha menina. A mais bonita do mundo”. Depois, o autor de “Confesso Que Vivi” procurou ocultar Malva Marina. “É um ser perfeitamente ridículo”, disse, contrafeito, a amigos. Em seguida, tachou-a de “vampiresa de três quilos” e a abandonou. “Custa aceitar que do autor de ‘Cem Sonetos de Amor’ nasceram tais palavras”, afirma Paco Rego. Sobre Maruca, Pablo Neruda escreveu: “Era uma mulher alta [superava 1,80m] e suave, avessa totalmente ao mundo das artes e letras”. Ao contrário do marido, não apreciava festas e boemia.

Maria Hagenaar Vogelzang, a Maruca, com Pablo Neruda: a Javanesa foi abandonada à míngua pelo poeta. Chileno ganhou o Nobel de Literatura

Ao se afastar de Malva Marina, que avaliava como um ser estúpido, Pablo Neruda acabou se desligando de Maruca. Ele dizia que a menina não dormia e era incômoda. Logo iniciou um relacionamento com a argentina Delia del Carril, La Hormiguita. Em 1936, deixa a mulher e a filha definitivamente e vai morar com Delia del Carril.

Pablo Neruda deixa Maruca e Malva quase sem dinheiro em Montecarlo, para onde havia fugido da Guerra Civil Espanhola. “Maruca cruza toda a França com sua filha enferma, até chegar a Holanda, onde se instala na cidade de Gouda. Mãe e filha passam fome. Maruca vive em pensões e trabalha no que encontra. Sua menina fica aos cuidados de uma família cristã. Suplica a Neruda que lhe mande dinheiro para poder dar comida à filha”, relata o jornalista de “El Mundo”. “Gastei meu último centavo enviando a carta”, lamenta Maruca.

A filha esquecida de Pablo Neruda morreu em 2 de março de 1943, em Gouda, onde está enterrada. Maruca avisou o poeta, por intermédio do consulado do Chile em Haya, sobre a morte da criança, mas o homem que cantou o amor de maneira tão linda e delicada “respondeu-lhe” com o silêncio. Na prática, tudo indica, a teoria é outra.

Poemas de Pablo Neruda sobre o amor

O poeta chileno cantou o amor de maneira dilacerada, mas decidiu não dar nenhum apoio à filha doente

1

Saberás que não te amo e que te amo

posto que de dois modos é a vida,

a palavra é uma asa do silêncio,

o fogo tem uma metade de frio.

Eu te amo para começar a amar-te,

para recomeçar o infinito

e para não deixar de amar-te nunca:

por isso não te amo ainda.

Te amo e não te amo como se tivesse

em minhas mãos as chaves da fortuna

e um incerto destino desafortunado.

Meu amor tem duas vidas para amar-te.

Por isso te amo quando não te amo

e por isso te amo quando te amo.

2

Antes de amar-te, amor, nada era meu

Vacilei pelas ruas e as coisas:

Nada contava nem tinha nome:

O mundo era do ar que esperava.

E conheci salões cinzentos,

Túneis habitados pela lua,

Hangares cruéis que se despediam,

Perguntas que insistiam na areia.

Tudo estava vazio, morto e mudo,

Caído, abandonado e decaído,

Tudo era inalienavelmente alheio,

Tudo era dos outros e de ninguém,

Até que tua beleza e tua pobreza

De dádivas encheram o outono.