*Jamal Singh
“Eu tenho um amigo, do curso de filosofia, que diz que em toda a história da humanidade, os piores entre nós não foram os assassinos, nem os políticos, muito menos os mentirosos. Pra ele, os piores foram, e são, os omissos. Porque eles foram ainda mais cruéis que os maus, mas os foram consigo mesmos, ao exterminar seus sonhos, seus vislumbres, sua inspiração. Durante toda minha vida eu pertenci a esse clube dos déspotas de si mesmo. Sempre acreditei que ser artista era coisa para os outros, e não para mim.”
Topei por acaso com “Ana Crônica”, trabalho de estreia de Rafael Senra. Publicado em 2009, o próprio autor decidiu disponibilizá-lo na internet, para atingir um público maior. A personagem título, Ana, é uma jovem que mora em São João Del Rei, cidade universitária no interior de Minas Gerais. Ana Largou a Universidade depois de um fim de relacionamento conturbado e que gerou traumas, e tem um emprego que detesta numa farmácia. Seu apelido de “Ana Crônica” vem de uma de suas melhores amigas, Lygia, uma roqueira gótica, que junto com Rita (que abandonou a pintura em busca de estabilidade financeira) acompanham Ana em suas desventuras.
As três passeiam pelas praças e bares da cidade, entre bebedeiras e ficadas, papos cabeça e crises existenciais. Outros personagens vão entrando na história, e suas vidas são alteradas pelas personagens principais, muitas vezes sem elas saberem. No segundo e último capítulo da história todos os personagens, incluindo o ex de Ana que volta a cidade, convergem com seus sonhos e mágoas durante uma festa numa república universitária onde a banda de Lygia vai tocar.
Eu adoro histórias de autores estreantes, seja no audiovisual, HQ ou na Literatura. È quando as influências do autor estão muito visíveis, é quando ele ainda está desenvolvendo sua assinatura e principalmente, pelo fato de a trama, mesmo o autor não querendo, pareça bastante autobiográfica. Rafael Senra além de quadrinista também é músico, com três álbuns musicais lançados, e escreveu dois livros. Além de “Ana Crônica” também lançou a história curta “Lonely Hearts”, sobre os Beatles, e “Balada Sideral” uma HQ em que mistura ficção cientifica e rock. É perceptível o amor de Rafael pela boa música em “Ana Crônica”, além de uma extrema sensibilidade em sua escrita.
Quem já lê quadrinhos há um certo tempo iria perceber de qualquer maneira que é um trabalho de estreia: Os personagens tem longos monólogos, há uma narração em off de algum personagem em quase toda a obra, que é extensamente dialogada. Isso não desabona a obra, só demonstra o estágio inicial em que Rafael se encontrava como autor de HQ. O que me incomodou mesmo foi a gordofobia com que a personagem é tratada em toda a obra: tanto por suas amigas como a gordofobia internalizada dela mesmo. Sei que isso ainda era muito comum na década passada, mas o recurso é usado até cansar.
Isso porém não tira o brilho da obra, que acredito que mesmo quando foi lançada, já tinha esse gosto de nostalgia. De tardes e noites conversando sobre Rock, Filmes e Política. A lembrança daqueles sorrisos e das palavras não ditas, das paixões da juventude, e ainda com uma deliciosa referência a Love & Rockets. “Ana Crônica” é recomendada para todos aqueles que amaram, e também a aqueles que perderam, na juventude. E também para quem nunca parou de sonhar. Você pode adquirir o download gratuitamente dela no site do autor.