• search
  • Entrar — Criar Conta

Animais tem direitos, sim

Juliana Maria Rocha Pinheiro Bezerra da Silva, advogada licenciada, especialista em Direito Constitucional, Mestre em Direitos e Garantias Constitucionais, Doutoranda em Direito Econômico e Empresarial, Oficial da Foça Aérea Brasileira, autora dos livros sobre Direito Animal (Família Multiespécie; Meu pet consome: o Direito do Consumidor aplicado ao mercado pet; Responsabilidade civil do médico veterinário; e Curso de Direito Animal), fala e esclarece sobre suas pesquisas na área animalista, uma questão por muito tempo ignorada pela sociedade brasileira.

*Franklin Jorge

Impressiona a clareza com que expõe, em seus livros, os reflexos do Direito Animal no Direito de famílias e de sucessões. O que a levou a enveredar por esse caminho?

As pessoas têm dificuldade de abraçar o novo, sem considerar que a sociedade é mutável. Por isso, muitas pessoas tratam esse tema como uma futilidade. Mas os direitos dos animais vão além do superficial. Na verdade, trata-se de uma questão de saúde pública, além do que os animais de estimação, atualmente, ocupam uma posição diferenciada dentro dos núcleos familiares em virtude da existência de laços afetivos que os aproxima de membros da família. Desta feita, surgem diversas situações relacionadas ao direito de família e do animal, cuja solução é dificultada pela ausência de normas jurídicas específicas sobre o assunto.

Mas não só no direito de família há reflexos, passando pelo direito do consumidor, direito civil, condominial, constitucional, penal, dentre outros.

A ausência de debates no tema nos fez enveredar para o aprofundamento do estudo, somado aos ideais que nos move. Faço parte de uma família multiespécie, sou voluntária em uma ONG e conheço, de perto, vários aspectos ignorados pelas pessoas e pelo Estado. Era chegada a hora de abrir-se os debates.

Quem vem a ser uma “família multiespécies”?

É a família que engloba, além de seus membros humanos, os animais que, por sua afetividade, passam a integrar o núcleo familiar. Há casos em que, em divórcios e separações, a guarda dos animais são disputadas e, como às vezes ocorre com os próprios filhos, acabam tendo, dependendo do juiz que julga, a guarda compartilhada.

Porém, não é o fato de alguém ter um animal em casa que faz deste um membro do clã familiar. Há outras características, além da afetividade, como a intimidade e a consideração ao animal.

Por intimidade entenda-se, por exemplo, a participação na rotina familiar, a circulação livre nos cômodos da residência. Já por consideração ao animal, é a importância dada aos pets pelos humanos no momento de tomar algumas decisões. Por exemplo,  deixar de viajar por não ter com quem deixar o animal, escolher determinada moradia porque aceita animais, dentre outras.

É certo que ainda há uma certa dificuldade relativa a essa questão, sobretudo o desenvolvimento de estudos na área, apesar das demandas cada vez mais frequentes. A OAB do Ceará, por exemplo, já dispõe de uma Comissão de Direito Animal, ao contrário do que ocorre com a OAB RN, que ainda não iniciou o desenvolvimento dos debates acerca do tema por meio de Comissão específica. De forma contrária, na Bahia há até mestrado em Direito Animal, mas no Brasil tudo é muito lento e se arrasta indefinidamente.

Sabe-se que o Brasil é o segundo maior mercado Pet do mundo. Só perdemos para os EUA. Em 2018 o IBGE divulgou que há nos lares brasileiros mais animais do que crianças. Creio que isto quer nos dizer alguma coisa.

 O Poder Judiciário já está percebendo isto?

Sim, tendo aplicado a analogia no momento de resolver os litígios levados à sua apreciação. Em decorrência disto, já há pensão alimentícia concedida para animais e aplicação do instituto da guarda compartilhada. Assim, mesmo sem leis específicas, há decisões judiciais nesse sentido. Porém, nossa luta é pela positivação do direito dessas relações, posto que, sem normas, tudo depende de quem julga.

Ainda acompanhando a tendência, é possível deixar herança em testamento para pessoa na condição de que o beneficiário cuidará do animal, o que antes não era discutido.

Não podemos esquecer que já se pode registrar animais em Cartórios, o que antes só era permitido aos humanos, à exemplo do Cartório único de Baía Formosa que oferece o serviço, até então facultativo.

O fato é que já se entende que o animal é ser senciente. Ele sente. Ele sofre e se alegra. Assim, decisões judiciais devem levar em consideração o bem estar do animal, analisado o contexto. Isto pode ajudar na guarda compartilhada, que ainda não é regulamentada por lei, sendo a aceitação de que os animais possuem emoções fator de grande valia em uma disputa judicial pela tutoria do animal. Portanto, os animais devem ser uma preocupação da nossa sociedade.

E quanto aos animais abandonados?

Estima-se que há 30 milhões de animais abandonados no Brasil e desses apenas 170 mil estão em OnGs e sob a guarda de protetores. Isto é um fato que não podemos ignorar. E está a nos exigir soluções. O que me dói quanto aos animais abandonados é que muitos querem tirar o foco do problema. A insensibilidade é a primeira morte do ser humano. Abandonar animais é crime. Não podemos ignorar que todos temos obrigações sociais e isto contempla os animais em situação de vulnerabilidade. Através dos animais mostramos a nossa humanidade.

As pessoas precisam deixar de lado a ideia de que as ONGs estão aí para tirar o problema do foco de visão. Querem esconder o problema em locais que mal conseguem manter os animais já abrigados. Existem pessoas que fazem apelo para que venhamos a atuar em determinadas situações onde os primeiros passos poderiam ser realizados por ela. Por exemplo, ligar falando que um animal está sendo mal tratado porque o tutor não coloca água para o mesmo. Antes do resgate, porque não pôs a água? Por que não denunciou?

As pessoas não querem assumir suas responsabilidades sociais. Ninguém gosta de ver animal sofrer, por isso enchem as ONGs. Chega o animal, mas não chega o apoio financeiro.

Há ações em curso em defesa desse direito?

Diversas. Mas merece destaque o PL 27, de 2018, na qual o Senado decidiu que animal não é coisa e, sim, um ser sensciente. Mas precisamos que os diversos projetos de lei em tramitação andem de forma mais célere, e que haja maior rigorosidade em prol da defesa de seres naturalmente vulneráveis.

 Há preceitos éticos que precisam ser respeitados?

Se há dano contra o animal, esse dano precisa ser rigorosamente reparado. Portanto, precisamos de leis específicas que assegurem esses direitos, alguns fundamentais. Hoje tramita no Senado e na Câmara mais de 600 projetos de lei em defesa dos animais. Antigamente se dizia que os animais não sentem, como uma forma de amenizar a culpa, mas isto está mudando. A ética animal vem impactando na alimentação das pessoas, à exemplo dos veganos, no modo de se vestir, nos hábitos cotidianos. Algumas empresas deixaram de utilizar matérias primas que importam em sofrimento animal, bem como testes em animais, como o caso dos  cosméticos.

 O que mais prejudica os animais?

A indústria da moda e da beleza são grandes vilões. Estima-se que nos EUA 200 animais morrem por minuto por causa de testes de laboratório. Porém, devido a pressão social, as grandes grifes estão deixando de usar o couro e várias delas usam nos cosméticos um selo para mostrar que não torturam animais. O primeiro direito do consumidor é o direito à informação e isso não é respeitado. Tenho certeza de que se as pessoas souberem que o produto que estão adquirindo foi confeccionado às custas de sofrimento animal, pensarão antes de financiar esse mercado.

Porém, a maior barreira acha-se no próprio ser humano. Minha preocupação não é com os animais, mas com as pessoas que ignoram essa questão, afinal, ficar inerte ou não se indignar é prova cabal de que a sociedade está doente.

A apatia social é, sem dúvidas, o maior obstáculo daqueles que despertaram para a importância da causa.