*Edilson França
Quando o inefável Presidente Fernando Collor confiscou a nossa minguada poupança, impondo desgraça e sérios transtornos para muitos brasileiros, sua então ministra da economia, Zélia Cardoso, apressou-se em advertir o Judiciário de que, caso não “colaborasse”, arcaria com a responsabilidade pelo fracasso do salvador plano econômico que acabara de anunciar, com a petulância que viria caracterizar sua postura.
Não faz muito tempo, um outro adepto da mesma estratégia, também cogitou da responsabilidade do Judiciário por uma possível falência do sistema financeiro de habitação, caso as decisões judiciais insistissem em proteger o mutuário contra a ficção do saldo devedor e contra o esperto modelo de reajuste das prestações da casa própria.
Não faltam exemplos desse malfadado expediente. Estendendo o reajuste do soldo dos militares aos demais servidores públicos, chegou-se a dizer, o Judiciário inviabilizaria a folha de pagamento do funcionalismo. Mais recentemente, se propalou que, ao frustrarem a cobrança de contribuição previdenciária dos aposentados, os nossos Juízes seriam, em consequência, responsáveis pela quebra da previdência social.
Tempos atrás, serviçais do mesmo naipe, já tinham dito que, ao reconhecer como devido o reajuste de 84% para esses mesmos aposentados, o Judiciário seria responsável pelo atraso do pagamento a todos beneficiários da previdência. O terrorismo foi tamanho que a sede da Procuradoria da República, aqui em Natal, foi praticamente invadida por assustados aposentados que pediam a desistência da ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal. Mas não é só, deficiências que afloram do sistema de saúde à política de segurança pública, aqui acolá, são debitadas ao Judiciário por algum desses assessores, cômicos às vezes, não fosse a gravidade das consequências dessa malfadada técnica de mutação.
Pois bem, tais fatos são relembrados para mostrar como passado e presente se identificam quando afigura-se viável transferir responsabilidades administrativas para o Judiciário. Recentemente, consumada a incúria e a desídia que resultou na atual crise energética, manejadas por sequazes de duvidosa idoneidade jurídica, os megafones do Planalto se voltam para o Judiciário exigindo “compreensão”. O eufemismo, entretanto, não é capaz de mascarar a conhecida manobra, tantas vezes repetida. Adotam-se “medidas judiciais” ou “sérias providências administrativas”, sabidamente inconstitucionais, para que, tão logo invalidadas pela Justiça, se possa ter a quem atribuir uma possível “desgraça” e, consequentemente, como justificar novas medidas ao gosto do jurista do dia.
Por isso mesmo, embora concordemos com uma genérica convocação cívica, voltada para o engajamento de todos os brasileiros no necessário racionamento de energia, não vemos total acerto na conclusão do presidente nacional da OAB, Rubens Aprobato, quando declarou à imprensa que “o governo quer afastar o Judiciário da discussão do plano.”
É certo que as inconcebíveis medidas provisórias recentemente editadas, também objetivam intimidar o consumidor, desestimulando-o na busca de amparo do Judiciário. Isso é verdade, sobretudo no que ser refere à natural rejeição coletiva a qualquer tipo de uso da crise energética em benefício das empresas concessionárias ou dos sempre carentes cofres públicos, ávidos de multas, taxas e sobretaxas.
É preciso não esquecer, entretanto, que ao tentar superar o problema energético, violentando a lei e rasgando a Constituição, os magos do Planalto, ao contrário do que se possa pensar, também oferecem, matreiramente, motivos e razões jurídicas para que o cidadão bata às portas do Judiciário e obtenha a proteção esperada.
A partir daí, torna-se fácil para esses estrategistas do direito transformar um “diligente executivo” em vítima da “incompreensão” e “da falta de patriotismo” do Judiciário. A cantilena será a mesma: Fizemos tudo que foi possível. Entregamos ao Judiciário os textos legais capazes de equacionar o problema legal. Infelizmente, faltou compreensão dos Juízes.
Está pronto, portanto, o palco e escolhidos os atores, bandidos e mocinhos definidos, comédia ensaiada e pronta para ser reencenada. Como se vê, insiste-se num velho roteiro escrito há muito tempo. Mas é bom que os carrascos da Constituição e do Código de Defesa do Consumidor, não esqueçam que cenário e público já não são os mesmos de tempos atrás.
Imprensa livre, consumidor consciente dos seus direitos, juízes mais cônscios do seu papel social e comprometidos efetivamente com a causa da Justiça, somarão forças no desmascaramento dessa velha e surrada estratégia. Importante, assim, que não silenciemos diante da realidade que já se faz presente. O Judiciário fará o que tem feito: harmonizar a fruição dos direitos fundamentais com o interesse social, repelindo, com veemência, os excessos, o arbítrio e a arrogância jurídica. Enfim, senso de justiça, honestidade e coragem ainda constituem-se valores cultuados pela grande maioria dos nossos magistrados.
Edilson Alves de França é SubProcurador da República aposentado e Professor do Curso de Direito da UFRN