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Aquela doçura irresistível…

Mário del Monaco e James King, dois tenores, duas escolas diferentes de canto, em um mesmo momento operístico.

*Alexsandro Alves

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Ouvir del Monaco em uma cena wagneriana pode ser algo inusitado e os mais radicais torcem o nariz. Farei nesse artigo uma comparação entre del Monaco e um tenor wagneriano, James King, da mesma cena.

Por mais que eu aprecie esse tenor italiano, considero também que, mesmo ele tendo a potência exata para Wagner, ele é mal educado na emissão de seu canto. Em muitos momentos, por exemplo no bricht mir hervor aus der Brust, (explode em meu peito, 03:52, do primeiro vídeo), o tenor é desagradável e parece jogar pedras na partitura.

O mesmo momento, no segundo vídeo, cantado por James King (02:40), nos soa como uma progressão lógica e calculada  da urgência dramática necessária para o momento.

Claro que precisamos fazer certas ponderações, mas mesmo quando estas são feitas, outras surgem. A principal delas é que são tenores de escolas diferentes. A natureza do canto italiano é a supremacia da voz a plenos pulmões; já em Wagner o canto precisa ser moldado por uma inteligência dramática calculada e, não raro, oposta ao exibicionismo vocal tão amado pelos italianos.

Então, o desagrado que alguns sentem ao ouvir del Monaco em Wagner encontra justificativa histórica na construção do canto em seus respetivos países. A apreciação estética depende de fatores culturais, por vezes tão pormenorizados, que chegam a serem locais.

Imagino como seria minha apreciação de Wagner se tivesse iniciado pelos italianos. A descoberta da interpretação, digamos, correta, seria um choque cultural. O contrário não ocorreu. Já primordialmente de posse do canto wagneriano a partir de cantores wagnerianos, del Monaco se tornou uma espécie de souvenir exótico e não um estranhamento cultural muito perturbador.

Porém, eu sou fã do italiano. Ainda mais quando canta os italianos. Seu Otello (de Verdi), para mim, continua sendo o maior, sobretudo a gravação com Renata Tebaldi e Aldo Protti, com a Orquestra Filarmônica de Viena, regidos por Karajan. Essa da foto abaixo, com del Monaco caracterizado como Otello:

 

 

O exibicionismo vocal, mesmo em momentos como o Wälse! Wälse! – que del Monaco gosta de alargar e sustentar a um nível inumano, não se encontra na beleza do canto de King (segundo vídeo, 02:15). Na sequência, King parece temer a visão da árvore iluminada pelo raio de fogo da lareira. Sua voz emite sons suaves, que marcam sua desilusão, pois não conseguiu ver a espada no tronco, ao invés disso, ao olhar o brilho na árvore, sua mente encontra o olhar de Sieglinde, tal qual ela deixou para ele ao sair da sala acompanhando Hunding (segundo vídeo, 02:54 – 03:48, o mesmo momento, no vídeo de del Monaco se encontra em 04:06 – 05:02):

Was gleißt dort hell im Glimmerschein? Que brilho é esse no tronco?
Welch ein Strahl bricht aus der Esche Stamm? Que raio banha o tronco do freixo?
Des Blinden Auge leuchtet ein Blitz: Um clarão relampeia em um olho cego:
lustig lacht da der Blick. Mas parece sorrir ao brilhar
Wie der Schein so hehr das Herz mir sengt! e meu coração queima ao ver!
Ist es der Blick der blühenden Frau, É o brilho do olhar da mulher,
den dort haftend sie hinter sich ließ, que ela deixou para trás,
als aus dem Saal sie schied? quando forçada a sair da sala?

Essa delicadeza de expressão, essa mudança que faz a enunciação variar da surpresa para a indagação e por fim, para o silêncio, não achamos em del Monaco. O italiano é unidimensional e ríspido, King alcança aquela estranha delicadeza, que é ao mesmo tempo forte e marcante, a doçura wagneriana, como diz Proust, que é uma persuasão suave mas decidida, inevitável e irresistível.

James King elabora seu canto com grande variedade dramática, contornando o canto com o drama que lhe é adequado. Não é exibicionismo de cantor, é uma atuação dramática, verdadeira.

 

James King

Abaixo, os vídeos. O primeiro, com del Monaco; o segundo, com James King. Notem que o final do vídeo de King é a continuação da cena com o retorno de Sieglinde, porque esse vídeo é de uma gravação ao vivo da ópera (Bayreuth, 67), embora não mostre a encenação. Já o vídeo de del Monaco é de um concerto.

 

Primeiro vídeo: del Monaco:

 

 

Segundo vídeo: King: