*Maria da Paz Ribeiro Dantas – Escritora e Professora do Departamento de Letras da UFPE
Em seu livro O spleen de Natal (2ª. Edição revista e aumentada, Edufrn, Natal, 2002) Franklin Jorge explora ângulos inusitados do popular ligado a Natal e à cultura potiguar. Sua matéria-prima pode ter resultado do que jornalisticamente se chama entrevista. Na verdade, o termo adequado seria conversa; uma conversa a dois em que o entrevistador fica em off. Tão em off que não há demarcações gráficas, nenhuma indicação de que tenha ocorrido transição entre sua fala e a do entrevistado.
Os interlocutores são figuras que, ao mesmo tempo falando de suas histórias pessoais, de gostos, preferências por coisas e lugares, vão referindo fatos, circunstâncias em que trazem guardada a memória da cidade. Há os que vão entrando em cena, dizendo o que viram, o que viveram, testemunharam; uma galeria de tipos folclóricos os mais diversos. Destaco entre eles a figura de Blecaute, um negro especialista em provocar o instinto sádico da polícia. Seu único delito é gostar de andar produzido, e haja kitsch (mas não é isso absolutamente que incomoda a polícia, que a provoca nos seus brios de colocar o mundo nos eixos. Franklin Jorge deixa que ele diga o que é:
“(…) Ele estava grilado com o meu modelito. Ele achou estranha a minha produção. Examinou-me da cabeça aos pés. Queria saber porque eu me visto assim e pediu meus documentos. Me revistou ali mesmo, no meio da rua, na calçada do edifício Barão do Rio Branco, como se eu fosse um criminoso.
“(…) Aqui, em contato com pessoas que estão espiritualmente muito distantes do progresso e bem próximas da bomba atômica, muitas vezes me sinto emocionalmente um criminoso. Natal é uma cidade miserável onde purgamos um karma. Natal é o inferno.
“(…) Eu andava pela cidade como um morto anda. Completamente sem esperança, eu me sentia exausto de existir. Cara, eu apanhei tanto nas mãos de Karruzo Carlos que, não aguentando mais, fiquei pirandélico”.
Outra figura que chama atenção pela indumentária (os diferentes passam ao largo da moda) é o Alberto Brasileiro, nascido em Juazeiro em 1922. antigo integrante da companhia teatral de Marquise Branca (1910-1957), carrega o passado numa imagem da qual ele não se desfaz, seja nas vestes ou nas palavras: “Ator e cantor country, veste-se de vaqueiro e nunca se aparta de sua surrada jaqueta de jeans, de suas botas tacheadas, coldre e revólver que detona balas de festim (…)”.
Contracenando, uma anciã de 90 anos desfia lembranças de como era a cidade no tempo dela. O tom é levemente nostálgico, mas percebe-se o cuidado de descrever cenas em que há implicações históricas vistas também pelo prisma econômico:
“(…) Não havia luz elétrica. Lampiões fuliginosos, colocados à distância, iluminavam parcamente as ruas principais. Por medida de economia, permaneciam apagados, em noites de lua cheia. Naquele tempo, ao contrário de hoje, praticava-se a economia. Não havia ostentação. Mesmo os ricos, que eram poucos, viviam frugalmente”.
Vista assim, de várias perspectivas, Natal me pareceu mais rica do que aquela imagem de cartão postal que me encheu os olhos quando lá entrei pela primeira vez no ano passado, quando anotei: senti afinidade com aquelas imagens dos três Reis Magos dominando o espaço à maneira do Cristo Redentor, no Rio. Como um gesto de boas-vindas aos que chegam. Imediata a simpatia de mim para com aquelas figuras de peregrinos ligados a uma simbologia do movimento, do viajar sem pressa como quem atravessa a areia dos séculos. Mais tarde, indo na direção das praias de Ponta Negra e Búzios, parecia-me, não sei porquê, retornar a uma paisagem da infância: a de certas histórias de Trancoso. Efeito do layout, da paisagem das casas emolduradas pelas dunas, em meio ao verde de uma natureza bem preservada, sob um céu azul tranquilo? Seria o “astral” aberto das pessoas, a cidade vista a olho nu, livre do filtro do olhar turístico, num momento de passagem, o que contribuiu para me dar a impressão de uma cidade não provinciana? O livro de Franklin Jorge mostrou-me uma forma interessante de conhecer uma cultura, um povo, uma cidade: fazendo-a falar. Não sobre um assunto recortado a partir de um ponto de vista privilegiado. Mas sobre o que vai aflorando na conversa, ao deus-dará da escuta de um interlocutor interessado, como mostra ser Franklin Jorge, que tece, quase que indistintamente, sua fala com a fala de quem, ao seu lado, durante a visita, vai se soltando, soltando a língua ao bel-prazer do entrevistador.
Conversa ou entrevista, tudo dá no mesmo: aqui não se joga conversa fora.
*Originalmente publicado no Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco (Recife, Ano XIX, Maio de 2005)