*Maria Maria Gomes
Quarto de despejo: diário de uma favelada é uma obra bastante significativa para o Brasil. Publicada em 1960, através do apoio de Audálio Dantas, jornalista, a obra ganhou grande repercussão mundial, sendo traduzida em 13 idiomas. A narrativa escrita por uma mulher negra, favelada e muito pobre representa o Brasil que muitos desconhecem ou o conhecem apenas pelas imagens da televisão ou das revistas. Ainda, pelas lentes de fotógrafos sensíveis que buscam penetrar a alma do povo. A realidade nua é escrita de forma crua, sem idiossincrasias, sem rodeios ou floreios que a poética, geralmente, nos estimula a fazer em prol de uma escrita mais metafórica e rica em figuras de linguagem. Nesse caso, não é um livro em prosa com enleios de poesia. É uma escrita que nos toca como se faz uma pinça ao tocar uma ferida aberta, tamanha a força com a qual o seu conteúdo é reproduzido em palavras, na maioria, escapadas das regras gramaticais, mas que, nem por isso, deixa de ser autenticamente nossa, de fácil compreensão e de profunda sensibilidade.
A história começa com Carolina Maria de Jesus, natural de Sacramento, Minas Gerais e que mora na favela do Canindé às margens do rio Tietê, em São Paulo, bem na época em que se pretendia construir a marginal. A autora gostava muito de ler e aprendera na escola onde estudou na sua terra natal. Conseguiu concluir a segunda série do Ensino Fundamental, apenas, mas o gosto pela leitura a levou a encontrar diversas formas de transformar a sua realidade. Carolina morava em um barraco deteriorado, pobre, com paredes ruindo e uma mobília mínima que servia para representar o sentido de um lar, uma vez que ela morava com seus três filhos. Todos os dias ela escrevia em seu diário os fatos marcantes da vida na favela e os dos lugares diferentes por onde andava, incluindo bairros importantes da capital paulista. Marcada pela fome, Carolina Maria de Jesus, protagonista e autora da obra, não precisou de um narrador personagem, ela era a sua imagem e semelhança fiel. Seu ofício? Catar papel, lata, madeira e ferro para vender em locais que recolhiam esse material. Na maioria das vezes, a opção era, almoçar ou jantar, dependendo do que fora arrecadado naquele dia de trabalho intenso. Ao chegar em casa, depois de percorrer vários caminhos distantes, trazia algum dinheiro e, com ele, comprava o mínimo que era possível. Quando estava com fome, dizia ela: quando eu não tinha nada o que comer, em vez de xingar, eu escrevia. Logo a leitura e a escrita eram fundamentais para a manutenção de sua sanidade emocional. Escrever era a prática que a estimulava a viver, mesmo tendo pensado em tirar a própria vida, por várias vezes, especialmente quando via a sua volta a realidade daquelas pessoas igualmente a dela e dos três filhos. Pelas andanças, catando coisas nos lixos, encontrava cadernos usados, mas com folhas limpas e ela exultava de alegria, porque sabia que tinha onde dar continuidade aos seus escritos.
O livro Quarto de Despejo só passou a existir quando o jornalista Audálio Dantas fora incumbido de produzir uma matéria na favela do Canindé para ser veiculada na Folha da Noite, em 1958. Ao chegar lá, ele se deparou com a Carolina e ela, com jeitão de líder comunitária, falou sobre política, economia, saúde, desigualdade social e pobreza. O jornalista ficou encantado e perguntou se ela sabia ler. Carolina mostrou logo os seus cadernos e ele ficou impressionado com a força que os escritos transmitiam. Levou os cadernos e começou a reorganizá-los de forma pontual e cronológica. Tudo o que estava escrito ali condizia com a realidade política da época; as promessas não cumpridas de deputados e senadores e seu apoio a quem mais lhe parecesse verossímil. Mas a mágoa e a desesperança vinham depois das campanhas eleitorais. A vida foi linear para a autora durante muito tempo, ela não sentia mais empatia pelos políticos e se entristecia constantemente. “… os bons eu enalteço, os maus eu critico. Devo reservar as palavras suaves para os operários, para os mendigos, que são escravos da miséria” (JESUS, 1960, p. 61). Com a ajuda do Audélio e da imprensa Carolina conseguiu publicar seu livro e no dia do lançamento vendeu 10.000 cópias. Com o dinheiro comprou uma casa no bairro de Santana, em São Paulo e foi morar com sua família. Viajou por quase toda a América Latina e por parte da Europa.
Gastou, desproporcionalmente, seu capital e comprou um sítio no interior de São Paulo, onde morreu pobre e catando papel novamente. Diante desse perfil eu questiono: Que semelhanças poderíamos encontrar entre a mineira Carolina e a Dona Militana, romanceira potiguar? E mais, quantas Carolinas existem nos becos escuros, embaixo das pontes, nas periferias no Brasil? Onde estão as Carolinas e Militanas que muitas vezes cruzam conosco e nem percebemos? Não precisam ser negras, faveladas, pobres para serem consideradas mulheres de sangue no olho. A cor não é requisito para uma análise, mas a Força, o Empoderamento, A defesa e a Coragem de revisitar a vida. Carolina dizia que a fome era amarela, porque protagonizava o real e não lhe carecia o uso estilístico em demasia para nomear o seu “doer”, e nossas outras Carolinas, também não. Eu faço parte desse contexto porque produzo minhas obras de maneira independente, suada… catando ninharias daqui e dali com o fim de tornar concreto o meu abstrato/real. Assim como a Carolina, que era uma mulher com viés feminista por não permitir trocar o casamento pela leitura e a escrita, além de ser mãe solteira por opção, também sou uma mulher que entende a leitura e a escrita como transformadores da realidade. Quem não lê se vulnerabiliza, se entrega, se desarma, de desargumenta. O Quarto de despejo: diário de uma favelada está nas escolas públicas de todo o país, através de uma publicação do Ministério da Cultura via FNDE/2013 e é um verdadeiro documento cultural tangível pronto para ser degustado e compreendido como o relato verdadeiro de quem sabe o poder da leitura e da escrita para a formação do caráter. Portanto, sugiro que sejam despertadas as Carolinas e Militanas que habitam o nosso inconsciente coletivo.
Maria Maria Gomes – Escritora e poetisa pós-graduada em Letras luso-brasileiras pela UFRN.