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As grandes veredas de Mia Couto

O escritor moçambicano Mia Couto relembra seu encontro com Guimarães Rosa, através da obra-prima “Grande sertão: veredas”, que conheceu através de um amigo. Entrevista para o El País.

*Da Redação

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Quando você conheceu a literatura de Guimarães Rosa?

Ele chegou a mim através de Luandino Vieira, um escritor angolano que me influenciou muito. Meu primeiro livro de contos foi muito marcado pela escrita do Luandino, que deixava que as vozes da rua entrassem na história e fossem elas próprias personagens. E um dia ele falou comigo e disse: “Vai até a fonte, que está no Brasil. Eu mesmo fui influenciado pelo Guimarães Rosa”. Em 1985, quando Moçambique vivia uma guerra civil que nos fechava para o mundo, eu não conseguia ter ligação com o Brasil, mas um amigo trouxe-me uma fotocópia d’A terceira margem do rio. Eu estava no processo de criar meu segundo livro de contos, e aquilo foi como se eu tivesse descoberto a própria vocação de escrever. Esse foi meu primeiro grande contato com Guimarães. Depois fiquei anos tentando voltar e encontrá-lo em livros e mais tempo ainda demorei em chegar a Grande Sertão: Veredas. E, quando cheguei a ele, mesmo tendo passado pelos contos, o primeiro encontro não foi fácil. Eu acho que tinha medo, continuo tendo. É como se de repente houvesse uma revelação, não sobre o que ele estava contando, mas sobre mim próprio.

Qual foi essa revelação?

O que o Guimarães fez foi uma abertura de caminho, uma espécie de luz verde, uma autorização, dizendo “você pode ir por este caminho, pode-se fazer literatura assim”, deixando que as vozes chamadas não cultas, que as vozes das pessoas do campo pudessem remexer na história e no próprio narrador. Quando cheguei a Grande Sertão, eu já estava embriagado dessa literatura.

Dar esse protagonismo às vozes das personagens, como se brotassem sozinhas das páginas do livro, é a grande contribuição de Guimarães Rosa à literatura lusófona?

Eu acho que tudo o que ele faz é quase um milagre, principalmente tendo o pé em uma coisa muito perigosa, que é o pitoresco, que pode ser considerado regionalista, e, ao mesmo tempo, debruçando-se sobre os grandes temas do mundo, as grandes interrogações da humanidade. Do ponto de vista da literatura lusófona africana, foi uma contribuição mais ao nível do tratamento linguístico, ver como ele contava aquilo por meio de uma linguagem poética.

Qual seu trecho favorito de Grande Sertão?

É o momento em que o Riobaldo sobe numa grande pedra, olha para o vão abaixo e diz que parece que é como se a gente tivesse um brinquedo, que é o mundo. Essa coisa de transformar o mundo em uma coisa com a qual podemos brincar é uma espécie de revolução de uma infância que foi tolhida. Isso me tocou.

Vê similaridades entre sua obra e a de Guimarães Rosa?

Acho que não tem muita coisa. Só isso que eu, agora já menos, mas em um certo momento deixei-me encantar por essa brincriação, que era jogar com as palavras, reinventá-las, muito motivado por uma coisa que vem de dentro. Isto é, os moçambicanos têm vivas e falam em seu cotidiano outras línguas que não o português, e há um momento muito feliz para um escritor, que é perceber que sua língua não está acabada, não está feita. Por exemplo, eu todo dia recolho palavras novas na rua, palavras que não são criações literárias. Isso é um alimento muito grande. Por exemplo, as pessoas dizem arrumáriopara dizer armário. A palavra arrumário tem muito mais sentido, não só porque é o lugar onde arrumamos as coisas, mas porque, se revisitarmos a história, o armário era o lugar onde se guardavam as armas. Essa relação da língua com uma coisa que é nossa, mas não é, que tem profundidade e história, é muito salutar para nos reportarmos ao que Guimarães Rosa dizia sobre o malefício de uma linguagem funcional, uma linguagem que serve só para uma comunicação imediata.