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Em fragmento de Assú, mitologia e vivências, livro ainda inédito, o autor evoca duas figuras que habitaram sua infância

*Franklin Jorge

As duas irmãs vivem enclausuradas numa rixa que aparentemente não tem fim. Nenhuma delas consegue explicar os motivos que as levaram a tamanho desentendimento que começou quando ainda eram muito jovens. Únicas sobreviventes duma numerosa e tradicional família do Assú, digladiam-se há mais de setenta anos por nenhum motivo, apesar de se amarem muito. Julieta e Julia não conseguem viver separadas e por isso se atacam mutuamente a qualquer pretexto ou sem nenhum pretexto.

De ascendência açoriana, residem desde 1973 numa modesta casa geminada à Rua do Córrego, atualmente denominada Aureliano Lopo, cada uma delas dispondo de porta e janela que, no entanto, raramente se abrem. Antes da mudança, sempre viveram por no tradicional sobrado de seus avós, na Praça Pedro Velho, um dos mais belos exemplares arquitetônicos do Rio Grande do Norte que, demolido pelos novos proprietários, deu lugar a um supermercado em estilo incaracterístico, numa prova de que o Instituto do Patrimônio Histórico é, no Rio Grande do Norte, apenas uma repartição que não atua nem consegue ultrapassar os limites de Natal.

Filhas de Adolfo Soares de Macedo [1870-1962] e de Júlia Julieta [1872-1964], Julieta e Júlia, as irmãs inimigas, alimentam desde a infância uma desavença que ignoram como e porque começou. Elas sabem apenas que não se suportam e que estão sempre procurando motivos para justificar novas discussões e pendências, cada vez mais acirradas.

Visitei-as a primeira vez na companhia da escritora Maria Eugênia Maceira Montenegro, que as ajudou a encontrar essa casa dividida por uma parede que as mantém separadas, mas não desinformadas do que se passa na casa da outra. Elas justificam que as paredes têm ouvidos. Originalmente não havia essa divisão, porém as duas chegaram à conclusão que seria impossível viver sob o mesmo teto, trombando uma com a outra no dia a dia, por motivo injustificado. Mesmo assim, apesar da parede que as separa, continuam brigando, sem um único dia de paz.

Quando nos despedimos, batemos inutilmente à porta de Julieta. Júlia, da sua janela, informou que a irmã não abriria a porta de jeito nenhum, pois não costuma receber restos. Se quiserem falar com ela, voltem amanhã e batam à sua porta antes de me procurarem… Não esqueçam que ela não recebe restos… Entendemos então que só podíamos visitá-las em dias alternados. Nunca no mesmo dia, o que lhes pareceria uma tremenda desfeita.

Na verdade, Julieta não estava em casa, razão pela qual não atendeu ao nosso chamado. Havia pouco, conversáramos com Júlia, que nos recebeu amavelmente em sua minúscula e bem arrumada sala de estar, presidida por um retrato seu retocado a mão por um desses fotógrafos itinerantes que durante anos percorriam os sertões em busca de clientes.

Dona Gena pergunta-lhe porque não faz as pazes com a irmã. E ela quer, contesta Júlia, agitando as mãos com vivacidade. E ela quer? E ela quer? Desde pequenas a gente brigava sem que nem pra que. Por qualquer motivo ou sem motivo nos engalfinhávamos pela casa. Com a morte de papai, que ainda podia com a gente, a coisa entre nós desmantelou-se de vez. É um caso sério, admite, parada diante de nós, torcendo a barra da saia. Agora não vejo mais conserto para essa desavença…

Júlia explica que “não é a desunida” das duas; que Julieta, sim, é que é birrenta e não quer acordo. Ela tem o gênio de cobra e não dá o braço a torcer. Eu até já quis vender essa minha casa para ajudar a melhorar a dela, que está caindo aos pedaços… Teria sido tão bom para as duas, comenta Dona Gena. Assim vocês poderiam voltar a morar juntas… E ela quer? E ela quer? – retruca Júlia, alteando a voz. E ela quer?

Nascida em 1911, Júlia veste-se com apuro, não dispensando anéis, relógio de pulso, brincos e cordão de ouro com um pesado crucifixo que lhe pende do busto. Muito branca, quase transparente, não tem nenhuma ruga, apesar de já maior de setenta anos. Os olhos azuis são extraordinariamente límpidos e brilhantes.

Volto no dia seguinte com o fotógrafo Demócrito Amorim para conversar com Julieta, a mais velha das irmãs, nascida num lugar de nome Alto da Montanha, distrito do Mendubim, em 1907. Vestida com apuro, desculpa-se pela demora em abrir a porta, pois estava na cozinha, preparando a comida. Demócrito, seu velho amigo, explica-lhe a natureza de minha visita. E Julieta, num arranco de vaidade, protesta. E eu vou tirar retrato para jornal assim desapetrechada? Que não dirá o povo Assú, me vendo assim toda desarrumada? Estou velha, mas não estou desgarrada nem louca, para sair de qualquer jeito numa fotografia. Era só o que me faltava entrar para a história sem nenhuma camada de pó de arroz na cara… Quem não se cuida se descuida. E, num muxoxo, Era só o que faltava, além de idosa, desleixada. Ah, não…

Louvo-lhe a elegância e o charme. Julieta ri, satisfeita. Será que eu não posso ao menos me ajeitar um pouco? Passar um pouco de pó no rosto e um traço de batom nos lábios…? Como a irmã, ostenta belos acessórios de ouro, brincos, pulseira, anéis, um grosso trancelim que lhe orna o pescoço de garça. Vá, vá se ajeitar, encorajo-a. Demore o tempo que quiser. Nós a esperaremos aqui. Embora não saiba como vai fazer para ficar mais bela do que já é, acrescento com sinceridade e admiração.

Noto que a casa, impecavelmente limpa e bem cuidada, tem muitos adornos feitos por suas mãos. Flores de papel em artísticos arranjos exorbitam dos jarros dispostos sobre os móveis. Sobre uma mesinha, coberta com uma toalha bordada, a radiola movida a pilha. Ao lado da cadeira de balanço, o rádio ligado num programa musical. Nas paredes, reproduções de quadros famosos e estampas do Coração de Jesus e de Padre Cícero, de quem é devota. Em destaque um retrato do papa João Paulo 2º, por quem tem uma grande admiração.

Julieta retorna toda produzida. Trocou o vestido por um outro, certamente usado em ocasiões especiais, como essa, pois segundo diz não é todo dia que recebe um jornalista em sua casa. Nunca pude imaginar que algum dia daria uma entrevista… Gabo-lhe a elegância, o passo felino, a fina camada de pó de arroz, o discreto carmim, o suave perfume que emana a cada movimento que faz. Julieta apenas sorri. Quando fui me aposentar, tive de levar todos os documentos porque ninguém acreditava que eu tivesse aquela idade,, diz, sem dissimular a vaidade e a autossatisfação.

Demócrito, cheio de malicia, pergunta-lhe por Júlia, cujos passos se fazem ouvir do outro lado da parede que separa as duas irmãs. Me apartei dela para não brigar, responde Julieta, resignada. Meu espírito não combina com o dela. E, depois de uma pausa, Garanto que ela, curiosa como costuma ser, deve estar com o ouvido colado na parede, ouvindo a nossa conversa. Voltando-se para mim, Demócrito informa que até bem pouco tempo Julieta tinha um namorado. Ela ri, concordando. Cheguei a essa idade, mas ainda não estou morta… Sim, de fato, tive um namorado até pouco tempo. Teté [Demócrito Amorim] tem razão… Nessa idade, não tenho motivos para ficar escondendo o leite. Comigo é pão-pão, queijo-queijo. Quem gosta de subterfúgios é Júlia. É sonsa e se o senhor não abrir o olho ela lhe bota no bolso. Qualquer político teria muito a aprender com a sua dissimulação.

Julieta gosta mesmo é de festas e não dispensa o violão, que toca, segundo diz, razoavelmente. Sempre tocou, mas agora, depois de ter entrado na terceira idade, tornou-se ainda mais musical. Em casa ou na rua, quando possível, não dispensa o violão. A música é uma boa companhia. Infelizmente, no momento, minha radiola está quebrada e não posso mais rodar os meus discos. Mas o rádio está ligado sempre, dia e noite, pois sem música o fardo da vida fica mais difícil de carregar. Quem canta seus males espanta, diziam os antigos. A música faz bem à alma e alerta os sentidos. Para mim, quem não gosta de música, não presta. A música é uma arte celestial. Já ouvi dizer que a música é a linguagem através da qual os anjos se comunicam entre si e se dirigem ao Criador. É o idioma do Paraíso… Não há música no inferno. Não há música no inferno.

Despeço-me, prometendo voltar no dia seguinte.