*Walmir Ayala – Poeta, escritor, crítico, romancista, tradutor, obteve em 1970 o Prêmio Brasília de Literatura.
Franklin Jorge considera o personagem de suas liturgias existencialmente falido. Os personagens, diria eu. Mas desta falência confessada e patética, ele extrai um depoimento apaixonante sobre o tempo que passa.
Ao optar pela denominação de “liturgias”, para esta prosa confessional e despudorada, apesar da delicadeza e da poesia que serve de vértebra ao denso monólogo, Franklin Jorge delata o timbre sacral de sua narrativa, que não conta histórias, mas cauteriza experiências. E estas liturgias nomeiam realmente seus interlocutores, para o louvor ou a execração. Neste sentido um livro até certo ponto terrível, pelo desassombrado desaforo de certas passagens, e de uma luminosidade afetiva e amorosa em muitos momentos antípodas.
O que magnetiza mais, na leitura deste livro, não é o componente ficcional, o encadeado de situações nem sempre inteiras em sua corporificação verbal. Interessa sobretudo é o ritmo, e a confissão (profissão de fé) desnastrada em reflexões de grande beleza e profundidade. Franklin Jorge integra uma geração de apedrejadores, e sente-se o gozo com que atinge o alvo, ao mesmo tempo a entrega deliciosa aos momentos de puro enleio lírico. Há uma grande dignidade durante o livro todo, onde se delineia o poeta marginalizado numa sociedade mesquinha e preconceituosa, onde os valores da vaidade, do materialismo imediato e supérfluo, sobrepõem-se a qualquer sentimento menos epidérmico.
Acompanha-se o sofrer em carne viva, de circunstâncias coroadas de injustiça, e sobretudo da insuportável visão dos paquidermes diante de uma relva orvalhada, que não lhes parece capaz de suportar o peso das nádegas e da consciência que carregam. Há um toque sedutor de narcisismo confesso, um gosto de ser amado e admirado, que revela o quanto o autor se empenha em ser sincero, conquistando com isso um espaço de ingenuidade que logo se transforma em fortaleza. Porque nas horas da porrada, ninguém como ele. E ninguém tão generoso em estreitar contra o coração as expressões humanas ou literárias embebidas de humanidade e inocência. Uso inocência aqui como expressão de um estado de despojamento que toca o nervo da pura verdade, e que pode ser nuvem ou espinho, escarro ou redenção.
Confesso que li este livro de uma só vez, incapaz de interromper o mergulho. Isto me parece consagrador, se outros leitores tiverem a mesma empatia. Interessou-me nele, em cada palavra, o calor e o interesse da vida vivida. E por falar em vida, dou a Franklin Jorge a palavra a este respeito, quando nos diz: “Escrevo. E a minha vida vai ficando inteiramente por escrever. A vida, para a fuga, encontra sempre uma porosidade. Mário de Oliveira disse exatamente isto em seu poema. A vida, essa energia multifária, criando-se da contradição e do caos, da própria vida e da morte. Da vida que sobrevive na morte. Há, na morte, uma forma de vida obscura que aguarda ainda a mais completa morte, para de repente brotar numa forma de vida que, por sua vez, traz dentro de si uma morte incessante e secreta. Como uma serpente autofágica que se escreve. Escrever, essa redundância”.
*Apresentação do romance Esse Negócio Falido de Existir [inédito].
