*Alexsandro Alves
Nos sete volumes de Em busca do tempo perdido, Marcel Proust cria uma galeria de personagens intensos, que de um volume para outro mudam de perspectiva, de opiniões e de classe social. Dentre seus personagens, há um destaque mais pronunciado para as mulheres.
Dessas, desejo tecer algumas considerações sobre quatro delas e, mais futuramente, sobre uma quinta personagem, são elas: a duquesa de Guermantes, madame Verdurin, Odete de Crecy e a mãe do Narrador; a quinta personagem é a avó do Narrador, que ficará para um segundo momento.
Cada uma dessas personagens é um mosaico de emoções e situações em si mesmas; quando interagem nas páginas desse romance espetacular, compõem um painel social em que um sociólogo poderia passar anos e anos de seu trabalho intelectual.
Pode parecer um tanto quanto apaixonado demais e por isso mesmo kitsch demais, porém eu não consigo conter a frase seguinte: são os personagens literários mais encantadores que conheci, até o momento.
A primeira dessas personagens da qual desejo recordar certas impressões é a duquesa de Guermantes. Não revelarei seu nome aqui. Os nomes são ingredientes crucias na composição de Proust, e na escolha do nome da duquesa, quando ouvimos esse nome pela primeira vez, em uma fala de seu sobrinho Robert de Saint Loup, no terceiro romance da série, No caminho de Guermantes, a impressão é como o raiar de uma alvorada em nossa alma.
E o mais interessante e importante, esse nome é revelado em uma conversa trivial, uma simples pergunta do Narrador e, inesperadamente, Saint Loup, ao invés de pronunciar algo como a minha tia? A duquesa de Guermantes?, fala o seu nome.
Somos apresentados à duquesa no primeiro romance da série, No caminho de Swann, logo na primeira parte, Combray.
Combray é a cidade fictícia em que o personagem nasceu e para lá retorna sempre nas férias, quando criança. Essa cidade é dominada pelos Guermantes, nobres poderosos que mantêm uma relação de amor e de escândalos com a cidade.
O Narrador recorda sua infância. De como sentia uma atração religiosa e mítica pela duquesa. Essa fascinação o faz revestir a personagem de uma musicalidade wagneriana, ele a torna uma personagem de Lohengrin. E não apenas pelas impressões do Narrador, mas a família dos Guermantes descende dos Brabantes, personagens dessa ópera de Wagner. Muitas das passagens literárias em Combray relembram as experiências musicais que temos ao ouvir Lohengrin e Parsifal, Combray é o reino do Graal para o personagem, porém, aqui, a figura central é feminina, exatamente, a duquesa.
Em Combray, a duquesa sempre é revestida por impressões que remetem à santidade, quase à castidade! É uma figura intocável.
Que apenas os sonhos de uma criança podem conceber. E o pequeno Narrador de fato envolve-se nessa aura mítica, de encantamento, que a duquesa jorra de sua pele, de seus cabelos, de seus olhos, de seu olhar, de seu sorriso e de seu caminhar.
Se assemelha a um Cristo, em que até mesmo das vestes é capaz de emanar virtude como nos falam os evangelhos.
(…) dava uma gradação de gerânio aos tapetes rubros que tinham sido estendidos para a solenidade e sobre os quais se adiantava sorrindo a senhora de Guermantes, e acrescentava à lã deles um róseo aveludado, uma epiderme de luz, esta espécie de ternura, de grave doçura na pompa e na alegria que caracterizam certas páginas de Lohengrin, certos quadros de Carpaccio, e que fazem entender que Baudelaire tenha podido atribuir ao som do clarim o epíteto de delicioso.
Julgando por essas palavras, e como a cena no livro passa-se em uma igreja, com a entrada de uma Guemante (descendente dos Brabantes), de forma solene, sem dúvida Proust refere-se, faz alusão (quando menciona certas páginas de Lohengrin) ao final do segundo ato de Lohengrin, quando a duquesa de Brabante adentra a igreja, solenemente, para seu casamento. Os cinco minutos finais da partitura do segundo ato, iniciando com a fala de Lohengrin: Heil dir, Elsa! Nun laß vor Gott uns gehn! É exatamente esse o momento que Proust, ao escrever seu texto, rememora. E entra o coro e a orquestra, pouco a pouco, crescendo em glória e esplendor, até que os trompetes emergem como uma “epiderme de luz” sobre toda a cena e brilha sem dúvida sobre a pessoa da duquesa.
Esse encantamento, esse sonho, é perdido, literalmente, em No caminho de Guermantes. Aqui, a duquesa é vista sob uma nova perspectiva.
Na grande cena do jantar, somos acompanhados de uma personagem que em nada prefiguraria àquela que conhecemos desde o primeiro romance. Proust consegue desfazer até mesmo a luz que ouvimos, e essa sinestesia é wagneriana, está em Tristan und Isolde, quando conhecemos seu nome.
A duquesa é mundana. Esnobe. Mesmo fútil. Aprecia humilhar os criados. Faz comentários jocosos contra qualquer outra pessoa, mas de preferência contra mulheres, oh, abriram o curral, a vaca chegou, afirma, quando vê uma desafeta adentrar em seu castelo, mas a cumprimenta de maneira socialmente aceitável, para depois continuar com os comentários fúteis e despropositados.
Uma de suas predileções é rir das piadas e comentários estupidamente preconceituosos de seu marido, o duque de Guermantes, que ela chama de Basin.
Basin vive em uma bolha. Seus comentários, marcadamente preconceituosos, por qualquer forma de preconceito, seja contra mulheres, negros, pobres, judeus, invertidos, são sempre respondidos com sorrisos afáveis pela duquesa, com se ela levasse, digamos, na brincadeira, as crueldades sociais do marido.
Aqui, aquela aura sacra wagneriana, mítica, é substituída pela cidade real de Baudelaire, com seus tipos marginais e marginalizados, prostitutas, mendigos, gente esnobe, por vezes antipática e grosseira, assassinos. Esse movimento é comum em Proust: do sacro para o profano, de Wagner para Baudelaire, de Combray para Paris.