*Alexsandro Alves
O primeiro artigo dessa série, sobre a duquesa de Guermantes, se encontra aqui.
A complexidade harmônica da obra de Proust é conseguida através de sua visão da sociedade parisiense de seu tempo. Proust faz uma espécie de etnografia dos tipos sociais que conheceu e os coloca como personagens de seu romance.
A sensação que temos, ao ler Em busca do tempo perdido, é de uma mistura de literatura e colunismo social – aliás, as colunas sociais dos jornais foram criadas pelo escritor. Enquanto jornalista e crítico de arte, Proust cria um novo gênero jornalístico: a coluna social.
Dedicada a mostrar para a cidade seu crème de la crème, as colunas sociais são, na verdade, um desfile de vaidades não raras vezes presunçosas e vazias.
Em sua obra mestra, Proust constrói claramente tipos oriundos de três substratos sociais bem definidos: há a classe mais elevada, a aristocracia; há os novos ricos burgueses; e há a classe operária.
A personagem desse artigo é uma mulher sem tradição social, porém com muito dinheiro e vontade de ser alguém através do mecenato artístico: madame Verdurin.
A conhecemos na segunda parte do primeiro romance, No caminho de Swann. Este romance é dividido em três partes: Combray, Um amor de Swann e Nome de lugares: o nome.
Em Um amor de Swann também conhecemos mais sobre a inesquecível Odete de Crécy, que foi nos apresentada já em Combray. Na verdade, essa segunda parte tem como personagens centrais a madame Verdurin, Odete e Charles Swann. É aqui que conhecemos o salão dos Verdurin e a tensa história de amor entre Odete e Charles, que se inicia nesse salão e toma as ruas de Paris.
Uma das marcas sociais do livro é a presença dos salões literários. Há vários salões no decorrer da obra, sendo os mais comentados o dos Verdurin e o dos Guermantes.
Mas quem frequenta um desses salões não pode frequentar o outro. Os Guermantes têm ojeriza ao salão dos Verdurin. Para eles, é um espaço sem classe e sem tradição. Apenas um lugar de um modismo passageiro e vulgar. Da mesma forma, madame Verdurin não permite que seus acólitos frequentem o salão dos Guermantes, embora o brilho e o feitiço dos Guermantes, aquela tradição nobiliárquica que tanto transparecem, sem dúvida provoque a curiosidade de todos, inclusive na madame.
Falando nela, quem é ela?
Madame Verdurin é uma mulher da alta burguesia parisiense, dona de uma fortuna quem sabe maior dos que a dos atuais Guermantes, que são aristocratas, mas em decadência. Porém, é exagerada, mal-educada, esnobe demais. Uma nova rica.
A conhecemos assim, através de seu salão, já no primeiro parágrafo de Um amor de Swann:
Para fazer parte do “pequeno núcleo”, do “pequeno grupo”, do “pequeno clã” dos Verdurin, uma condição bastava, mas era necessária: seria preciso aderir tacitamente a um credo, do qual um dos artigos rezava que o jovem pianista, protegido pela sra. Verdurin naquele ano e do qual ela dizia: “Não deveria ser permitido saber tocar Wagner tão bem assim!”, “liquidava” ao mesmo tempo com Planté e Rubinstein, e que o dr. Cottard tinha melhor diagnóstico do que Potain. Todo “novo recruta” a quem os Verdurin não podiam convencer que os saraus das pessoas que não frequentavam a casa eram aborrecidos como a chuva, via-se imediatamente excluído. Sob esse aspecto, as mulheres eram mais rebeldes que os homens em desistir de toda a curiosidade mundana e não queriam se resignar a abrir mão dos atrativos dos outros salões, e como, por outro lado, os Verdurin sentiam que esse espírito crítico e o demônio da frivolidade poderiam, por contágio, ser fatais à ortodoxia da igrejinha, foram levados a rejeitar sucessivamente todos os fiéis do sexo feminino. (Tradução de Fernando Py, página 166).
Este é o salão da madame Verdurin. Ela tem esse espaço como uma igreja e seus frequentadores são fiéis. Geralmente são homens, porque, como diz a citação acima, as mulheres são muito rebeldes e querem frequentar madame Verdurin e outros salões ao mesmo tempo. Isso é inadmissível: os Verdurin se sentem exclusivos e não permitem. Em tudo, a madame Verdurin é afetada e sem estilo. Exagerada. Quando um músico toca Wagner muito bem, ela grita e tem enxaquecas e desmaios. Em seu salão, ela é a rainha. Por isso tem uma poltrona especial, uma espécie de trono, muito alto, de pernas maiores que, quando se senta, permanece acima dos convidados, por sobre as cabeças. Assim, ela controla, segundo imagina, a todos, porque ver com quem cada um conversa. Com os amigos, prefere ser chamada de Patroa.
A Patroa é quem banca a alcoviteira entre a senhora de Crécy e o senhor Swann. Como nova rica afetada, tem predileção pelas artes, e é mecenas de muitos novos músicos. Suas composições preferidas são as de Beethoven e Wagner e as dos balés russos. Porém é incapaz de um bom juízo estético tanto sobre aqueles alemães quanto sobre estes russos. Também admira as sonatas de compositores franceses contemporâneos.
Ela também gosta de impor seus gostos a sua igrejinha. Em termos de pintura, os quadros de Elstir, pintor criado por Proust para o romance, são tidos em grande consideração estética; pessoas com as quais a madame não estabelece relações, seu pequeno grupo também não estabelece e, com quem ela cortar relações, seu pequeno grupo assim procede.
Ela nutre grande estima pelo dr. Cottard, porque, uma vez, a madame riu tão escandalosamente de uma piada, que seu queixo se deslocou, pendendo ante a igrejinha. Foi o dr. Cottard que o recolocou no lugar, motivo pelo qual ela o chama de “doutor Deus”.
Madame Verdurin é a burguesia parisiense em seu modo mais frívolo e perverso. Ao mesmo tempo cômica, é certo, porém suas risadinhas, seus comentários e sua falta de uma inteligência maior, aliados a uma visão de que o dinheiro torna qualquer um especial por si só, desenham uma personagem extremamente mundana e superficial. Mas endinheirada…
A Patroa e boa parte dos frequentadores de seu salão, são aqueles tipos que aplaudem O urinol, de Duchamp. Gente afetada, esnobe e indolente esteticamente.