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As putas do Conde Abbate

Colaborador de Navegos, provavelmente o mais brilhante e erudito crítico de sua geração, transporta o leitor à câmera libidinosa de um autor misógino.

*Francisco Alexsandro Soares Alves

Segundo a tradição clássica, o poeta ou dramaturgo, o escritor de ficção, não deve se mostrar na obra. Precisa ficar oculto em seus personagens. Isso, claro, foi abandonado no Romantismo: “quando alguém olha para o meu livro, sinto que me partem em dois”, disse Goethe.

O autor do Fausto não poderia imaginar o que se daria nos séculos seguintes. Hoje, a literatura é quase um diário. São poucos os autores que conseguem não se colocar tão escancaradamente no que escrevem. Mas isso não é nem defeito nem virtude, afinal, o que interessa é escrever bem.

Essa semana ocupei-me de um pequeno livro que chegou a mim: Um Conde Chamado Abbate.

É desses livros que se conhece logo o autor pelas primeiras páginas. Ele está em cada página.

O livro é sobre, unicamente, as aventuras sexuais de seu autor, o próprio conde. Que envolvem empregadas, evangélicas, virgens se descobrindo, mulheres casadas. Todas elas se tornam putas nas mãos do conde. Em cada página, ele insere tantos detalhes picantes, que das duas uma: ou é tudo criação ou havia uma terceira pessoa em cada cena do livro. São tantos detalhes que a pergunta é inevitável: quem faz sexo pensando? Pensar corta o prazer.

São aventuras que competem com as de Don Giovanni, da ópera de Mozart, com libreto do abade dissoluto Lorenzo da Ponte, baseada no Don Juan, de Molière.

Aqui vale a máxima de Wilde: “não existem livros morais ou imorais. Os livros são bem ou mal escritos.”

E esse pequeno livrinho é um catecismo zeferino sem desenhos. A maneira naturalista, em qualquer aspecto, das narrativas do conde, flui de verdade em verdade, não há encenação de um personagem. Parece fala demorada de seu autor para algum amigo. Direto. E por isso pode melindrar espíritos politicamente corretos, porque o livro é misógino e o autor assume essa condição. A mulher, nesse livro, é para os serviços do conde. A qualquer momento ou em qualquer lugar, esse Don Giovanni potiguar narra suas peripécias de maneira ora triste ora nostálgica e, na maioria das vezes, escancaradas. E mesmo assim, já me contradizendo, não seria esse mesmo o personagem do conde? Tal personagem é sempre macho, másculo, potente, dominador e caçador. O que torna, por fim, o assunto deveras cômico, pois seu autor deve ter seus mais de 60 anos e em determinado lugar ele assume que toma citrato de sildenafila, aquele comprimido azul…

Bem ou mal escrito? No que se propõe, é bem escrito. Mas não é para todos, e não é para mim. Um artista deve sempre mentir quando cria. Ocultar-se ao máximo. Para que serve um artista que não transpassa a pequenez de si mesmo?