*José Augusto Carvalho
Há algum tempo, uma aluna de um curso de letras, ao comentar num artigo a “Carta pras Icamiabas”, cap. IX do Macunaíma, de Mário de Andrade, se insurgiu contra a gramática, na presunção de que a língua ou a comunicação linguística possa existir sem ela, ou na ignorância do fato de que o próprio Mário de Andrade escreveu uma Gramatiquinha, que Edith Pimentel Pinto resgatou e comentou brilhantemente no livro A Gramatiquinha de Mário de Andrade – Texto e contexto. São Paulo: Duas Cidades, 1990.
O único grande problema de Mário de Andrade, embora tenha sido um bom usuário da língua, é que ele não era um técnico, o que o levou a misturar padrões, dialetos e registros diferentes. A proposta de Mário de Andrade, contudo, era das mais idealistas e das mais meritórias: a de codificar os fatos linguísticos que configurassem a unidade da língua no Brasil, sem deixar de mostrar que toda língua “se compõe de muitas línguas funcionais, mas que é uma unidade, em que perdem relevo as possíveis discrepâncias” (p. 293). Sua obra poderia, se concluída, resultar numa estilística da fala brasileira. Infelizmente, conforme a própria Autora, o pendor de Mário de Andrade “para o comentário crítico não se ajustava bem – ou ainda não se ajustara – ao propósito de codificar, embora precariamente, os fatos da norma brasileira” (p. 160).
A aluna do curso de letras terminou seu artigo citando elogiosamente parte da crônica “O gigolô das palavras”, de Luís Fernando Veríssimo, já treslida e malcomentada por Celso Luft no seu livro Língua e liberdade, segundo a qual o importante é comunicar e, à parte o fato de ajudar na eliminação de alguns erros mais graves, a gramática é apenas a língua das múmias. A autora do artigo achou que Mário de Andrade teria adorado a crônica de Luís Fernando Veríssimo, por causa desses ataques à gramática.
Mas Luís Fernando Veríssimo também é um usuário da língua, não um técnico. E, como bom usuário, tem o direito e o dever de insurgir-se contra as normas gramaticais do dialeto culto, porque a sua função, como escritor, é o de renovar a linguagem, o de reinventar novas formas de expressão, e não o de respeitar regrinhas. Mas daí a estender a todo usuário a função precípua de um escritor vai uma distância longa demais que os professores dessa aluna não puderam ou não souberam mostrar-lhe.
Acrescente-se a isso o desconhecimento que essa aluna demonstrou a respeito do que seja gramática. Há a gramática interna, que é o conjunto de regras interiorizadas pelo falante, que lhe permitem dizer, entender e reconhecer como de sua língua enunciados que nunca ouviu antes. Essa é a gramática natural, que não pode deixar de existir, sob pena de se condenar o falante ao silêncio e à incompreensão universal. E há as muitas gramáticas escritas por falantes nativos ou aloglotas, com objetivos diversos: ou descrever um dialeto social, regional, etário ou sexual (gramáticas dialetológicas); ou descrever as alterações ocorridas na formação de uma língua a partir da dialetação de outra, dita língua-mãe, ou de outra mais recuada cronologicamente, dita protolíngua (gramática histórica); ou mostrar as formas prestigiosas da língua (gramática normativa); ou descrever o modo como as expressões ou enunciados de uma língua se constroem (gramática gerativa, modular, de casos, tagmêmica, translativa ou estemática, de valências, entre outras), etc. Insurgir-se contra a gramática, genericamente, é revelar, no mínimo, um desconhecimento do que seja a língua, do que seja o próprio fenômeno linguístico ou até do que seja a base e a essência do processo de comunicação.
Um escritor se insurge contra as normas para transgredi-las, para dar asas à sua atividade criadora. Mas deve fazê-lo com conhecimento de causa, e não apenas intuitivamente, como preconiza Luís Fernando Veríssimo. Um aluno ou um professor de línguas é, antes de tudo, um técnico. Pode até ser um escritor, mas é como técnico que deve repassar suas lições. Insurgir-se contra a gramática normativa é desconhecer-lhe uma função catalisadora e supradialetal; é insurgir-se até mesmo contra a comunicação, pretensamente em nome da comunicação, porque é aceitar a anarquia linguística, o triunfo do princípio da dialetação, que levará, fatalmente, a uma nova Babel.
Pelo que sei da leitura atenta da Gramatiquinha, Mário de Andrade talvez tivesse adorado a crônica de Luís Fernando Veríssimo. Mas certamente teria chorado de tristeza diante da incompreensão de quem a citou.
*José Augusto Carvalho, Mestre em Linguística pela Unicamp e Doutor em Letras pela USP, é autor de vários livros sobre língua portuguesa, como: Pequeno Manual de Pontuação em Português (Brasília, Thesaurus, 2013) e Estudos sobre o Pronome (Brasília: Thesaurus, 2016).