*Carlos Russo Jr.
O mundo capitalista globalizado está percorrendo, desde o neoliberalismo dos anos 1970, uma trajetória em marcha ré na relação capital e trabalho. Vemos um efetivo retorno das classes trabalhadoras, ou seja, daqueles que vivem de seu próprio trabalho, assalariados ou autônomos, aqueles não proprietários dos meios de produção, à situação vivenciada pelos operários nos primórdios da sociedade urbano-industrial.
Na Europa, a partir do século XVIII, expandindo-se posteriormente para outras regiões do mundo sob a égide do capital, foram condições de extrema exploração que marcaram as relações entre os trabalhadores e seus empregadores.
Não havia legislação que as regulamentassem e, sempre que houvesse mais oferta de mão de obra que postos de trabalho, os capitalistas impunham jornadas sem limites legais, pagando o que lhes fosse mais conveniente. Eram as condições de contratação dadas pelo mercado, sem nenhuma interferência regulatória.
Além disso, as primeiras gerações de operários industriais não tinham experiência de ações coletivas na defesa de seus interesses. A organização em sindicatos, inclusive, era ilegal. Mas a reunião de um grande número de homens e mulheres num mesmo local – a fábrica – fez com que surgissem condições propícias para a construção de identidade de interesses a partir das vivências partilhadas no local de trabalho e fora dele.
E dessa identidade, nasceu a organização, a luta e a conquista de direitos.
Émile Zola é de origem pobre, tanto em dinheiro quanto em tradição familiar. Nascido em 1840, vivenciou o nascimento do proletariado francês como classe social. Ele foi o criador e representante mais expressivo da escola literária naturalista, dono de personalidade de extrema coragem, importante figura libertária da França.
Faleceu em 1902, provavelmente assassinado, quatro anos após o famoso artigo J’accuse, em que acusa os responsáveis pelo Exército Francês pelo processo fraudulento e antissemítico, do qual Alfred Dreyfus havia sido vítima.
“Germinal“, de 1888, é um clássico, um romance que trata da vida numa comarca carvoeira do Norte da França. “Germinal” é também o nome do primeiro mês da primavera no calendário da Revolução Francesa. Zola associou as sementes das plantas à possibilidade de transformação social: “por mais que arranquemos o broto das mudanças, elas sempre voltarão a germinar”!
Em cada uma das suas linhas, “Germinal” delata, da forma mais séria e moral possível, um retrato verdadeiro da sociedade contemporânea tal como ele, Zola a via, e como também o público era intimado na sua obra.
Em apenas um ano “Germinal” vendeu na França, dez vezes mais exemplares que a Bíblia!
A obra mostra como são desconsoladas as alegrias dessa gente, ou seja, dos carvoeiros do norte da França. Alegrias pobres e grosseiras; corrupção prematura e rápido desgaste do ser humano; embrutecimento da vida sexual em relação às condições de vida, natalidade demasiadamente elevada, pois a cópula é único deleite gratuito; fome, a fome sempre presente ao lado do frio em habitações precárias.
Por trás disto tudo, no caso dos mais enérgicos e inteligentes, o ódio revolucionário que se apressa para eclosão.
Estes são os motivos do texto.
Eles são postos em evidência sem recursos, sem medo diante das palavras mais claras, nem diante dos acontecimentos mais horríveis. A arte, com Zola, renunciou totalmente a procura de efeitos agradáveis no sentido tradicional, pois serve à verdade desagradável, opressiva, desconsolada dos explorados da Terra. Com Zola, o princípio da arte pela arte está liquidado.
Mas esta verdade serve simultaneamente como incitação para uma ação no sentido da reforma social! Trata-se sem qualquer dúvida do cerne do problema social do tempo passado e presente, da luta entre o capital industrial e os trabalhadores.
Zola foi além do Realismo meramente estético da geração que o precedeu. É dos pouquíssimos escritores do século que fizeram sua obra a partir dos grandes problemas da época. Neste sentido, apenas Balzac é comparável a ele.
“Germinal” é ainda hoje, após mais de um século, um livro terrível que também nada perdeu de sua importância, quase nada da sua atualidade. Há nele trechos que são clássicos, antológicos, pois apresentam com clareza e simplicidade modelares a situação de extrema miséria do proletariado e o seu despertar.
“O chato é quando a gente pensa que isso não pode mudar, quando a gente é jovem imagina que virá a felicidade, a gente espera coisas; depois a miséria sempre recomeça de novo, a gente fica preso lá dentro… eu não quero mal a ninguém, mas às vezes em que esta injustiça me revolta”.
Trata-se, sem dúvida, de uma grande tragédia histórica. Zola sabe como aqueles seres humanos pensam e falam. Conhece todos os detalhes da mineração, a psicologia e os tipos de operários e os da administração, o funcionamento das bolsas de valores, a luta entre os grupos capitalistas, a colaboração dos interesses capitalistas com o governo, a polícia e o exército.
Foi enorme o número de seguidores de Zola, mas ele foi o primeiro e sua obra está repleta de quadros de espécie e de hierarquia semelhante. Zola, o último dos grandes realistas franceses!
A consciência de classe não é um dado natural na história da humanidade, mas um processo de construção enraizado na prática coletiva.
Ao longo do século XX, avanços consideráveis foram sendo obtidos na relação capital/trabalho. Estes avanços resultaram de muita luta, acirrados confrontos entre trabalhadores e as forças de repressão, sempre a serviço da manutenção de interesse das elites dominantes. O movimento de paralisação dos trabalhadores e outras formas de luta e resistência, a partir da identificação de problemas comuns, foram, entretanto, levando à constituição e construção de uma consciência de classe e de organização.
A história foi semelhante onde quer que a sociedade industrial alicerçou bases. A própria lógica do capitalismo é universal, as particularidades de cada situação histórica constituem apenas peculiaridades.
O que importa é que a partir dos confrontos, de lutas, mas também de negociações, acordos, de conquistas, ao longo do século XX foi se constituindo um sistema de leis regulatórias das relações entre capital e trabalho, com configurações determinadas por cada contexto nacional e resultado da capacidade das classes trabalhadoras como protagonista no espaço de tomada de decisões.
O “estado de bem estar social”, implantado pós Segunda Guerra Mundial, no qual garantias foram asseguradas às classes não proprietárias, com distintas amplitudes em cada país, ocorreu sempre como resultado da capacidade de intervenção dos trabalhadores na configuração legal das relações de trabalho e de benefícios. Ademais, como contraponto ao capitalismo, havia, até a década de 1980, a presença do “socialismo real” da União Soviética.
Acontece que, junto com o avanço do neoliberalismo, desmontou-se também a sociedade socialista. E o capitalismo monopolista-financeiro surgiu triunfante!
É a partir daí que a História assemelha-se a uma roda que gira para trás. Tudo aquilo que foi conquistado ao longo de décadas parece ao capital como obstáculo, a cada novo ciclo de crise e acumulação, tudo deve ser removido.
Esse processo é global, mesmo que sua agressividade seja distinta em cada país, em função de condições históricas da constituição daquele “estado de bem estar” e da capacidade política dos trabalhadores em preservá-lo.
Formas contratuais entre empregados e empregadores devem ser “flexibilizadas”. A supressão de entraves à demissão de empregados possibilita às empresas adequar seu corpo funcional às flutuações da demanda do mercado, desonerando-se de obrigações rescisórias.
Os empregos estáveis, de duração indeterminada e com cobertura de benefícios, esfumaçaram-se. Substituíram-nos o trabalho precário, como os contratos por tempo determinado ou por projetos ou por tarefas.
No Brasil, a acelerada adoção de relações empresa/ “empreendedores autônomos P.J.”, eliminou toda a relação de assalariamento, referência da legislação trabalhista no país. Ademais, o enfoque em inovações tecnológicas e organizacionais tem produzido enorme aumento do desemprego e da exploração do trabalho, com repercussões danosas na saúde física e psíquica dos trabalhadores.
Nesse contexto histórico, são importantíssimo de serem revisitados livros como “Germinal” de Émile Zola, que retratam um tempo ultrapassado e heroico, tempos cruéis que pareceriam haver sido superados pelo avanço de um mundo “mais civilizado”, no qual a exploração do trabalho fora confinada em determinados limites e a cidadania dos trabalhadores reconhecida, aceita e respeitada.
Mas a perspectiva das primeiras décadas do século XXI parecerem ser a de um retorno a etapas passadas, a condições perversas, de perdas do tudo o que já havia sido consolidado, principalmente em nosso país.
Então, falar na roda da História girando para trás, na contramão do processo de avanço civilizatório, não é uma visão apocalíptica, fantasiosa ou pessimista de um futuro impossível, mas a construção de uma perspectiva delineada a partir de uma abordagem fática dos tempos pós-modernos. Uma pós- modernidade que é regressiva, voltada para o passado, na qual apenas uns poucos serão beneficiados.
Neste caminhar, a enorme maioria dos trabalhadores será explorada e esmagada.
Mas não nos esqueçamos de que “Germinal“, de 1888, é também o nome do primeiro mês da primavera no calendário da Revolução Francesa. Zola associou as sementes das plantas à possibilidade de transformação social: “por mais que arranquemos o broto das mudanças, elas sempre voltarão a germinar”!