• search
  • Entrar — Criar Conta

Aura literária

A leitura como acontecimento da alma envolve o livro em dois polos, ora o prazer das variáveis inerentes a qualquer edição, ora o fetiche da busca por uma edição original.

*Alan Pauls

[email protected]

 

«Quando li mais tarde Dom Quixote na versão original, pareceu-me uma má tradução. Ainda me lembro daqueles volumes vermelhos com letras douradas da edição Garnier. A dada altura a biblioteca do meu pai fragmentou-se e quando li  Dom Quixote  numa outra edição tive a sensação de que não era a verdadeira. Mais tarde, um amigo me comprou a edição Garnier, com as mesmas gravuras em aço, as mesmas notas de rodapé e também os mesmos erros de digitação. Para mim todas essas coisas fazem parte do livro; Considero que este é o verdadeiro  Quixote .”

Borges evoca uma experiência de infância, é verdade, e grande parte da luz que os seus detalhes irradiam também pode ser atribuída ao prestígio que gozam na memória das primeiras vezes. Contudo, ou talvez justamente por sua condição infantil, naquela cena autobiográfica já se esconde a ética supersticiosa do leitor que Borges professaria ao longo de sua vida. Não há livro que preexista à experiência de lê-lo, diz Borges. É o acontecimento da leitura – com todas as suas coordenadas, tanto as mais importantes como as mais triviais – que “fabrica” ​​o livro, que o constitui como um presente contínuo, “verdadeiro”, destinado a durar para sempre. A  aura da leitura não é simplesmente um “clima” externo que envolve o livro. É um fator causal , ativo, que intervém – alterando-os – no sentido e na identidade do livro, e que transforma toda uma série de acidentes e contingências (“volumes vermelhos”, “letras douradas”, “gravuras em aço”, “erratas ») em traços essenciais, sem os quais o livro deixaria instantaneamente de ser o que é e se tornaria outro. Assim, pensado por Borges, um livro – Dom Quixote , a Divina Comédia , A Metamorfose de Kafka – é um artefato curioso, desconcertante, com dois rostos: por um lado, é um objeto que se repete, que viaja, sempre “o mesmo”, por contextos em constante mudança, e cuja identidade, marcada por aquele tipo de nome próprio que é o título, goza de consenso suficiente para dois as pessoas, ao nomeá-lo, saibam ou assumam que se referem à mesma coisa; mas por outro lado é algo móvel, maleável, extremamente poroso: uma apoteose circunstancial fugaz, sempre única e sempre “outra”, constitutivamente enraizada nas coincidências da edição, da tipografia, das ilustrações, da cor do papel, da hora do dia, o espaço, o humor, os sons do ambiente, etc. O leitor Borges transita entre esses dois polos: entre o fascínio causado por todas as vicissitudes que um livro sofre ao longo de sua trajetória (edições, reedições, traduções, correções, exclusões, etc.) e o feitiço do bibliófilo, um pouco fetichista, em no qual submerge a ideia de um livro único, um “original”, um “incunábulo”. Assim, a leitura é em Borges um dos motores privilegiados daquela instabilidade que nunca deixa de surpreender a sua literatura: a relação entre o mesmo e o outro, entre a repetição e a diferença.

 

Alan Pauls
O Fator Borges