*Franklin Jorge
Fundador do romance moderno, Honoré de Balzac [1799-1850] preparou-se para escrever a comédia humana, e a escreveu quando se achou habilitado a fazê-lo, com a curiosidade de um noviço, ao chamar a atenção para detalhes e minúcias que teriam passado despercebidas a outros romancistas menos atentos ao fenômeno realista.
Revelou essas minúcias, através de um conjunto monumental de obras que cobrem e radiografam todos os estamentos sociais de sua época; ponderou sobre aspectos da vida, antes negligenciados por outros autores do gênero, como a linguagem do povo, particularmente a gíria usada por seus contemporâneos, que permanecem ainda vivas e de uso corrente na fala do povo.
Temos escutado reiteradas vezes – especialmente nos noticiários da televisão – expressões aplicadas à denúncia e ao desmantelamento de quadrilhas especializadas em superfaturamento de obras públicas, postas em circulação em vários contextos do seu complexo romance, habitado pelos mais variados e singulares seres humanos.
Apenas seus leitores mais constantes e atentos puderam identificar a origem de expressões como “laranja” e crimes de “colarinho branco”, entre outras já referidas por Balzac para caracterizar, no caso do “laranja”, a pessoa que serve de intermediário à consecução de atividades ilegais urdidas por outrem, em não poucos casos assumindo a culpa de crimes, cujos autores, por sua importância, delegam a culpa a terceiros. Originalmente, seria a laranja manchada, ou malsã que precisa ser retirada do cesto para não contaminar e fazer apodrecer as demais.
Os “crimes de colarinho branco” seriam cometidos por pessoas que se distinguem por sua prestigiosa posição social, em decorrência da fortuna, ou dos cargos que ocupam; têm a característica de ficarem impunes, não no romance de Balzac, onde a aplicação da lei não discrimina seus autores, como costuma ocorrer aqui, onde a impunidade nos faz pensar, muitas vezes, que o crime efetivamente compensa, apesar da ação de alguns juízes.
Essas e muitas outras gírias são empregadas por Balzac, de maneira pertinente, ao mergulhar no submundo do crime – um universo de fronteiras difusas. Neste, encontram-se e se confraternizam, ao mesmo tempo, o topo e a base da pirâmide social – banqueiros, políticos, magistrados, jornalistas, prostitutas, especuladores, trapaceiros, ladrões e assassinos, além do mais vulgar dos criminosos que transgride os códigos, movido pelo instinto de rapina ou pela necessidade, sem cogitar de enriquecer ilicitamente, mas, na maioria dos casos, de assegurar, através da transgressão, a precária sobrevivência.
Em Esplendores e Misérias das Cortesãs, obra iniciada em 1838, Balzac chama-nos a atenção para a pertinência desse idioma oficioso e pertinaz que só encontramos nos clássicos; idioma duma vivacidade brutal, corrente no meio do povo que, segundo Rabelais, um dos mestres de Balzac, seria aquele que faz tudo, ou seja, que não rejeita o que se lhe oferece, pois vive obrigado pela pobreza que, em qualquer época histórica, o caracteriza. Este o significado da palavra povo.
Ao refletir sobre a engrenagem social, Balzac parece nos dizer que as profissões que temos na sociedade não passam de aparências, razão pela qual tudo conflui para o lucro, seja ele grande ou pequeno. Conta, na prática, a idéia que fazemos das delas, daí essa promiscuidade, quase didática, com que o criador da Comédia Humana apresenta ao leitor as suas numerosas e complexas personagens. Não admira, pois, que ele descubra ter a alta sociedade, também, a sua gíria, de um gênero, no entanto, mais elaborado e, portanto, apto a se apresentar sob o disfarce de um estilo – a palavra que compete à gíria usada pelos afortunados, enquanto o calão serve de esteio à fala do povo.
Narrando a prisão de Jacques Collin, também conhecido como Padre Carlos Herrera, ou ainda Engana-Morte, uma das suas criações balzaquianas magistrais, faz-nos passear pelos nebulosos subterrâneos do crime, onde se fala a enérgica língua dos patifes, dos trapaceiros, dos ladrões, dos assassinos e de toda essa caterva que o inferno vomita com implacável contundência, para nos mostrar, como num jogo de espelhos, que não somos bons nem confiáveis. E, ao fazê-lo, dá-nos uma viva transcriação da realidade, detendo-se na apreciação dos usos e costumes e nas peculiaridades da linguagem, que caracterizam os diversos grupos humanos carecidos de ética e de idealismo.
Nesse mundo, onde o crime e a loucura têm alguma semelhança, reinam, em perfeita simbiose, a força física e a força moral, quer-nos dizer Balzac, levando-nos, de página em página, de encontro à poesia terrível e indispensável das galés, onde não se dorme – “se tira um ronco”. Note – ressalta, como que chamando à atenção o leitor desatento – a energia com que esse verbo exprime o sono particular da besta acossada, cansada, receosa, caída e rolada, nos abismos de um sono profundo e necessário, sob as poderosas asas da suspeita que sempre planam sobre ela [grifo nosso]. Sono assustador, semelhante ao do animal selvagem que dorme, que ronca e cujas orelhas, no entanto, velam de prudência redobrada! Que outra expressão pintaria melhor e com mais realismo o agoniado sono de quem tem contas a ajustar com a Justiça?
Tudo parece arisco nesse idioma, cujas sílabas que começam ou terminam suas palavras são rudes – segundo Balzac – e destoam, singularmente, do outro idioma que serve às pessoas de bem. “Empurrar a bóia para baixo” significaria comer, mas exprime, ao mesmo tempo, o comer às pressas, quase engolindo, sem mastigar, seja para não sentir o gosto, por sua má qualidade, ou porque assim comem as pessoas perseguidas, que não se podem dar ao prazer de degustar ou apreciar sossegadamente uma vianda.
Balzac reconhece a ancianidade e a novidade da gíria, que existe há muito tempo e sempre se renova, como resultante da experiência que não pode ser desdenhada por aqueles que se aventuram a pintar os costumes. Além disso, a necessidade de viver, em essência de natureza tão violenta, exige uma língua crua e incisiva, capaz de exprimi-la sem rodeios nem subterfúgios, razão pela qual o profissional do roubo, ao apropriar-se do alheio, crê estar apenas acessando os seus bens. Tal como o próprio Balzac acessou a realidade, com o intuito de transfigurá-la em um artefato estético que continua reverberando e provocando arrepios na sensibilidade dos leitores, um século e meio depois de sua morte.
Fragmentto do livro inédito O escrivão de Chatham.