*Alexsandro Alves
A Sinfonia n.º 4, em Si Bemol Maior, op. 60, dedicada ao conde Franz von Oppersdorff, estreou em 15 de novembro de 1807, no Burgtheater, em Viena. Houve uma execução na casa do príncipe Franz Joseph von Lobkowitz, regida pelo compositor, mas tratou-se de uma execução privada. O conde von Oppersdorff escutou a Sinfonia n.º 2 e, admirado com Beethoven, pediu-lhe que compusesse uma nova sinfonia em sua homenagem, pela qual pagaria uma considerável soma em dinheiro. Beethoven estava compondo, na época, aquela que seria sua Quinta, mas o caráter belicoso dessa obra não agradaria o conde, pensou Beethoven. Assim, resolveu parar a composição da Sinfonia em Dó Menor, e iniciou aquela que seria sua quarta obra sinfônica. E, dessa vez, por um lance do destino, o padrão beethoveniano para as sinfonias continuava em pé. Escutem a Terceira, a “Eroica”.
Os canhões que iniciam essa sinfonia, com seu desenvolvimento belicoso, sua marcha fúnebre pesada, essa atmosfera de guerra, nada disso tem vez na Quarta. Tome como exemplo mesmo o próprio início dessa sinfonia: sombrio, calmo, sem a mínima pressa. Não há o mínimo indício dos arroubos e das tempestades políticas da Terceira. É um mundo integralmente oposto ao mundo da sinfonia anterior. Assim como a Primeira e a Segunda, a Terceira e a Quarta formam um par contrastante. Na época, Beethoven também compunha sua única ópera, “Fidélio”. O tom mais ameno dessa sinfonia lembra o tom de muitas cenas dessa ópera, mas se esse tom dá certo na sinfonia, o mesmo não se pode dizer na ópera, porque é uma ópera política acima de tudo. Uma música para “Fidélio” deveria ser mais semelhante a uma Terceira ou a uma Quinta do que a uma Quarta.
A Quarta inicia sombria, escura. Pausadamente, Beethoven cria uma atmosfera noturna e apaziguada, negra e tranquila. É a sombra luminosa, cheia de luz, da noite, de uma noite ornada de estrelas e a Lua plena. O escurecer que clareia. É uma introdução longa, acariciante e misteriosa. Beethoven abre, aos poucos, as portas de um recinto. E da fresta, alguma luminosidade pode ser vista, mas está distante, tímida, mal alcança nossos olhos; nossos ouvidos procuram alguma confirmação mais segura, porém tudo é fugidio – esfumaçado – os contornos se dispersam em “pizzicatos” e arcadas sempre muito suaves que se estendem ao silêncio. De repente, o tom muda, e a porta abre-se. E estamos à tarde. Mas não em uma tarde com multidões, mas na tranquilidade de um fim de tarde.
Sentados em um banco de uma praça, dois amigos dialogam. É uma conversa entre amigos onde sempre há concórdia e identificação. Uma conversa serena e acolhedora entre a flauta e o oboé, entre o clarinete e o fagote, em todo o primeiro movimento. O que mais amo na Quarta, ela é muito sutil. Ela não chega anunciando a si mesma, como a Terceira ou a Quinta. Ela é esnobe, como não se quisesse se misturar com todo mundo. Uma flor em um jardim não precisa dizer que é bela, não precisa se anunciar. Quem diz é quem a vê, e não pode negar, é impossível. Essa sinfonia se comporta dessa maneira. Ela não faz questão de agradar. É difícil. É a sinfonia mais difícil de Beethoven, olhai os lírios nos campos dessa sinfonia, mas permanecei sem tocá-los. A resistência que essa sinfonia coloca é como se nos ordenasse: “contemplai-me vós! Sem me tocar!”.
Eu lembro que quando assisti aos concertos das nove sinfonias de Beethoven, exibidos pela Globo na década de 90, no programa Concerto Internacionais, não me agradei dessa obra. Nunca mais a ouvi de novo. Evitava. Eu só vim a amá-la no final de 2021. Como disse, é uma obra esnobe e única. Naturalmente encantadora. E hoje, posso dizer que está entre minhas sinfonias preferidas de Beethoven, juntamente com a Sexta e a Sétima – a Nona é um caso à parte. Há muitos temperamentos nas sinfonias de Beethoven. E precisam de tempo para maturar em nosso espírito. A Quarta permanece sendo a menos executada das sinfonias do compositor. Em uma lista de preferências, dificilmente alguém a coloca nas primeiras posições, por vezes, sequer ela surge ao menos nas últimas posições. Porque há uma imagem de Beethoven revolucionário, militarista, um halterofilista sonoro sempre pronto para quebrar seus próprios recordes. Mas a Quarta é um saudável descanso disso tudo.
Por ter demorado tanto a saber apreciá-la, por ela ser sempre tão resistente, ou, quem sabe, meu eu não estava pronto a aceitar uma beleza tão descompromissada, que surge bela não para mim, mas apenas porque ela é, e sendo, não pode ter outra natureza, considero suas audições hoje muito mais valiosas do que as que faço de qualquer outra sinfonia do compositor, em outras obras parece que há uma necessidade de afirmar-se para os ouvidos. Aqui, são os ouvidos que precisam ficar atentos sem que a música force qualquer coisa. Compasso após compasso, segura de si, tal qual é segura a natureza em um jardim. Ou uma gatinha peluda e fofa que nem liga se a olham e quando o dono vai acariciá-la, ela rejeita. O dono não é dono, aqui… Tão encantador isso. A beleza de não ter excessos, de não implorar para ser bela. É a mais encantadora das sinfonias dele.
E aqui esse artigo se torna um diário íntimo exposto ao público. Eu me distanciei desses sentimentos que as sinfonias ímpares de Beethoven evocam. Na verdade, escuto pouco a “Eroica”, por exemplo, há muito tempo. Às afirmações solares da Terceira, contraponho as mudanças lunares da Quarta. Assim é ela. Nos mostra demoradamente uma face, depois outra. Fiquemos parados. Não desejemos agarrar o que é livre. Tal a beleza exuberante das aves, que são mais belas quando distantes de nós, em seu habitat.
São quatro movimentos: “Adagio – Allegro vivace” (Lento – Rápido vivo); “Adagio” (Lento); “Menuetto – Allegro vivace – Trio: un poco meno allegro” (Minueto – Rápido vivo – Trio: um pouco menos rápido); “Allegro ma non troppo” (Rápido, mas nem tanto). Há uma predominância de andamentos lentos, tranquilos. Os “Allegro” tendem para a desaceleração, para a calma. Uma execução dura 35 minutos, em média. Há regentes que exageram na lentidão e a sinfonia pode chegar a ter 40 minutos. Abaixo, um link da obra, de uma gravação de Paavo Järvi, regente que abriu, para mim, as sutilezas sonoras dessa obra. Obrigado, maestro.
https://www.youtube.com/watch?v=RMzLZsoPDU4&ab_channel=deepnosepicker