Edilson Alves de França
Poucos compreenderam – ou quiseram compreender –, até hoje, a maneira apaixonada e quase messiânica com que o saudoso deputado federal Hélio Bicudo defendia “sua” Proposta de Emenda Constitucional (PEC), voltada para a reformulação da Justiça Eleitoral. Conforme revelou o combativo parlamentar, inclusive, quando veio a Natal, encontrava-se ele plenamente convencido de que uma justiça de momento, fluida, constituída por juízes temporários e bipolares, sem a necessária dedicação exclusiva e com alguns dos seus integrantes caídos das nuvens políticas, certamente não corresponderia à Justiça Eleitoral que ele desejava ver implementada no Brasil.
Atualmente, acompanhando certas controvérsias instauradas no âmbito dessa mesma Justiça, como bem exemplifica a intermitente tentativa de ressuscitação do efeito suspensivo para os recursos eleitorais, sou levado a relembrar a denominada “Emenda Bicudo”, termo pelo qual ficou conhecida. E isso me ocorre, principalmente, porque esse malfadado efeito suspensivo, teimosamente, tem angariado novos adeptos que, intermitentemente, chegam aos nossos Tribunais Eleitorais. Alguns deles tentados a remoldar a lei, em prejuízo flagrante para a memória de posições jurisprudenciais, capazes de impor novas derrotas à corrupção eleitoral.
Será que o combativo deputado tinha razão? Será que a limitada duração dos mandatos conferidos aos juízes temporários, de certa forma, restringe ou dificulta o domínio hermenêutico da matéria com a qual devem lidar diariamente? Ou, ainda, será que o caráter político, prevalente nas nomeações de alguns desses juízes ocasionais, de algum modo, alimenta perplexidades e requentamentos de determinadas matérias, tal como tem ocorrido nos últimos dias? Em verdade, não há como se responder, categórica e positivamente, a essas indagações. Pode-se, sim, garantir que, prestigiando-se, por exemplo, o efeito suspensivo nas cassações de mandatos, estar-se-á desrespeitando não só o eleitor, como também a própria Justiça Eleitoral.
Não deveria ser esquecido que, além da expressa vedação prevista no art. 257 do Código Eleitoral, paira, sobranceira, pacífica jurisprudência desfavorável ao cômico efeito suspensivo dessas cassações eleitorais. Muitos são os acórdãos que poderiam aqui ser lembrados, como exemplos da consagração do efeito imediato dessas decisões, proferidas ao longo dos últimos vinte anos. Cito, a propósito, por exemplar, um acordão relatado pelo juiz Cícero Martins, onde o lúcido magistrado, além de se revelar didático e elucidativo, já convencia a Corte Eleitoral quanto ao acerto do seu voto em favor dos efeitos imediatos das sentenças cassatórias.
Naquele julgamento, ao assimilar dois acórdãos do Tribunal Superior Eleitoral (números 3 941 e 1 282), da lavra dos ministros Carlos Velloso e Barros Monteiro, o emérito magistrado inadmitiu o efeito suspensivo que viabilizaria a permanência de dois cassados nos seus respectivos cargos. Na oportunidade, lembro bem, o elucidativo acórdão, entre outros pontos, chamou atenção para o fato de que, ao atribuir-se efeito suspensivo a recursos eleitorais dessa natureza, estar-se-ia, na prática, afastando do cenário jurídico, por antecipação e sem razões plausíveis, uma sentença lapidar, desmerecedora de qualquer censura.
É verdade que, ao longo do tempo, alguns cassados conseguiram macular as primeiras lições ministradas em favor do efeito imediato das decisões eleitorais. Entretanto, importa lembrar que suas “vitórias” sempre foram debitadas a certas espertezas processuais, desmerecedoras de aplausos. Até porque, nesses poucos casos, a venda dos olhos de Themis foi sempre retirada de forma monocrática, preferencialmente através de medidas cautelares, acolhidas por esse ou aquele juiz menos atento, para dizer o mínimo.
Na atual conjuntura, o receio maior de todos aqueles que estudam e devotam apreço ao direito eleitoral consiste na possibilidade desse ressuscitamento da tese suspensiva das cassações abrir passagem – como já ocorreu aqui mesmo no nosso Estado – para a prática de outras excrescências processuais, quase sempre caracterizadoras de verdadeiros abusos do direito de defesa. Talvez, quem sabe, iguais àquela mágica que permitiu a um prefeito cassado imprimir ao seu recurso o vagaroso caminho do STF, onde ali permaneceu até a conclusão do seu mandato. Caso essa concepção volte a triunfar, sejamos sinceros, somente uma suposta interseção mística de Hélio Bicudo poderá impedir o sucesso desse ou daquele “privilegiado”, que, graças a um efeito suspensivo, poderá voltar a se apresentar ao eleitor como o “cassado que nunca foi”.
Edilson Alves de França, procurador regional da República aposentado, ex-subprocurador-geral da República e professor de pós-graduação em direito na UFRN, é autor do livro “Teoria e Prática dos Prazos Eleitorais” (FeedBack; 350 págs.; 2014).
MAGISTRADO E POLÍTICO Além de deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores por dois mandatos (1991-1999), o bacharel em direito pela USP Hélio Bicudo, falecido em 2018 aos 96 anos, foi ministro da Fazenda no governo João Goulart (1961-1964) e vice-prefeito de São Paulo na gestão de Marta Suplicy (2001-2004); como parlamentar, o jurista foi autor da PEC 96/1992, que introduzia modificações no Poder Judiciário; sua proposta foi aprovada na Câmara em dezembro de 2004 e, no Senado, em janeiro do ano seguinte