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Biografia de personagens

Fundador de Navegos conta porque não teve a sua biografia escrita pelo singular autor do Memorial da Anta Esfolada, que reúne suas memórias de menino inteligente e buliçoso em Nova Cruz.

*Franklin Jorge

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Quando o escritor e grande memorialista Antenor Laurentino Ramos, recentemente falecido, me informou que pretendia escrever minha biografia, imediatamente o dissuadi dessa ideia, embora alegasse que ele podia escrever um livro mais interessante e original, se acaso tivesse interesse de escrever a biografia de meus personagens, esses seres, segundo a afirmativa de Ascendino Leite, cuja respiração se faz sentir através  a trama de palavras com as quais urdi suas existências  e as capturei na página de tantos livros que escrevi sem descanso e sem paga..

Como um escritor desprovido de imaginação e sem nenhum talento para o romanesco, devo-lhes, a essas criaturas em grande parte anônimas e sem a aparente grandeza requeridas aos personagens que inspiram livros, nada ou muito pouco teria escrito. Exceto, talvez, alguns ensaios sobre minhas leituras e  escritores que tenho reconhecido como meus predecessores ou mestres, entre os quais, Antônio Carlos Villaça e o próprio Ascendino. Sem o que li e ouvi deles, amigos fieis de tantos anos e convivência íntima, teria sido impossível não ter aprendido com eles alguma coisa extraída da experiência de cada um, para referir apenas brasileiros e o potiguar, meu conterrâneo Luís da Câmara Cascudo, o cronista de Natal que perfilou as velhas figuras duma crônica que prefigura à sua maneira uma Comédia Humana..

Antenor, entusiasmado por sua ideia que me pareceu de alguma forma despropositada, não deu ouvidos aos meus argumentos e ignorou quanto podia fazer por essa minha ideia que continuo a preferir a uma biografia pessoal que s´0 despertaria inveja ou maledicência. Sequer procurou saber de mim como podia ser essa obra que me parecia então sumamente original. Uma biografia, não do autor, mas de personagens que em algum momento de minha vida, aqui e alhures, tiveram o condão de despertar-me a curiosidade e o ensejo de, através da escrita, atribuir-lhes uma segunda vida e talvez a imortalidade que a obra literária, consubstanciada em valores bem pesados e medidos, proporciona alguma vez aos seres mais prosaicos, até, como Enderby, poeta escatológico da Literatura Inglesa que peidava sentado no vaso sanitário, enquanto escrevia sua poesia irreverente e metafisica.

Confesso que ao fazer tal proposta a Antenor, moveu-me uma ponta de vaidade – não tão mórbida quanto a que congestiona o ego de Diógenes da Cunha Lima, admito em meu favor. Mesmo assim, vaidade. Talvez tenha pensado, embora sem dize-lo, que tal livro, escrito por criador literário tão senhor de seus recursos, como Antenor, seria como que uma espécie de Passaporte para o Parnaso provinciano que, não considerando o autor, certamente aplaudiria as personagens que habitam sua memória, como Calixto, velho agricultor já nonagenário que surpreendi uma manhã em Portalegre, há uns cinquenta anos e que em seu empirismo inteligente e fecundo me ofereceu a melhor e mais precisa definição que já ouvi de um político – esse ser que continua comendo enquanto todos nós fazemos jejum. E o velho da Redinha que se tornou, para mim, um anjo da guarda? Um profundo conhecedor das dunas e da fauna de Santa Rita e Genipabu, que em setenta anos de vida somente tomara apenas dois banhos, um de chuva, quando tinha sete anos e viera do Ceará-Mirim para a Redinha, na garupa do cavalo de seu padrinho, que fora busca-lo após a morte de seus pais vitimados pela maleita. Zeloso de minha saúde e integridade, advertia-me às vezes, ao perceber que eu tomava de três a quatro banhos por dia, demonstrando com isto não ter nenhuma  consideração à saúde, ao entregar-me a pratica tão perigosa. Água mata, insistia. Já fora pescador e cavador de poços e cacimbas, atividades que considerava sumamente perigosas, pois expunham-no ao contato com a água…

Não consegui convencer o  autor de Memorial da Anta Esfolada, nem ele a mim. E assim, morreu Antenor, grande escritor de nossa língua, sem biografar-me e sem biografar minhas personagens que continuam anônimas .e à espera de um biografo inteligente e espirituoso.