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Borderline

Alexsandro Alves, escritor e professor, constata certa distância (necessária?) entre o público e a arte, entre triunfo e tormento e a irmandade entre dor, amor e admiração.

*Alexsandro Alves

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A chamada “inspiração” é um engano; esse é um erro gravíssimo que muitos são sempre tentados a repetir para explicar a composição de obras que gostam. Os artistas providenciam, por outro lado, claro, o apagamento do sofrimento que passaram para a realização de seu ofício, quase sempre.

Rachmaninov, compositor russo, gostava de afirmar que a música lhe vinha dormindo e esta o perturbava ao ponto de não o deixar dormir até que a colocasse no papel.

O mesmo ocorre quando lemos certos poemas: a fruição é tal, que imaginamos imediatamente que seu autor teve também a mesma facilidade na escrita.

Não teve. O escritor, no domínio de seus meios e recursos, consegue esconder os cortes profundos com os quais rasgou a pele e a carne para nos transmitir a leveza final que sua obra joga em nosso espírito.

Não há milagres para quem cria, pode haver para quem experimenta, após a conclusão do trabalho, o seu resultado final. Se o público, ao comtemplar um objeto estético, também experimentasse dos tormentos que um espírito criador passa, fugiria de qualquer contato com a obra de arte.

Podemos imaginar o sofrimento de van Gogh, mas não podemos de fato senti-lo como tal e qual se deu; sentimos vagamente a depressão profunda de Münch, embora sob hipótese alguma desejaríamos passar por suas desditas enquanto homem, misérias estas que o transformaram no artista que foi; quem deseja ficar surdo e compor uma Nona Sinfonia?; escutamos a doçura de Schumann… mas o compositor se precipitou de uma ponte no Rio Reno, já inteiramente tomado pela progressiva loucura, sobreviveu e passou o resto de seus dias em um manicômio, isto não está em sua música, mas são os bastidores de sua vida enquanto a escrevia; Álvares de Azevedo morreu aos 20 anos; ninguém suportaria viver com um alcoólatra eternamente fedorento a nicotina e sujeito a frequentes crises depressivas como Fernando Pessoa.

No fundo não há gênio, essa categoria oitocentista por excelência. Há muita transpiração e superação de si próprio em cada obra de arte. Um livro ou outro objeto estético podem ser uma confissão ou uma fuga. Mas o público sempre tenderá a entender como uma comunicação de um milagre.

É uma relação desequilibrada e sadomasoquista.