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Camões lírico (1-2)

Considerado um estilista e senhor de um estilo ático, Edgar Barbosa (1909-1976), em ensaio memorável torna acessível ao leitor moderno a obra lírica de Luís de Camões (1524-1580), o memorável autor de Os Lusíadas – considerado o maior poema da Língua Portuguesa, em cujo engenho poético Pedro de Acaçova só encontrara um defeito: “Não era bastante curto para se saber decorado, nem bastante longo para ser infinito.”

*Edgar Barbosa

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Estamos assistindo a uma ressurreição depois do crepúsculo. A literatura de agora é condensada, dirigida, social, econômica, política, e aquela em que aprendêramos a crer, a pensar e a sentir a verdadeira Beleza, se esconde na desolação do vendaval que nos persegue.

A evocação hoje, da sombra errante de um Poeta é também um desagravo à Poesia, jovem mãe eterna que embalou nossos primeiros sentimentos. É um sonho bom que nos traz, de longe, o perfume dos jardins perdidos. Toda angústia do que nos espera mais além, toda essa fome de realidade e de certeza, não se aliviam no sensacionalismo impresso, na oratória eleitoral, na fuga cotidiana para o rádio e para o cinema.

Foi Shelley quem disse que os poetas são, ainda que o não pareçam, os verdadeiros legisladores do mundo. E é em Camões que pensamos ao sentir que Os Lusíadas continuam sendo, depois de quase quatrocentos anos, nosso código e nosso evangelho, a carta magna da nossa língua e o guia da nossa compreensão do passado. Disse Pedro de Alcaçova que nele só encontrara um defeito: “Não era bastante curto para se saber decorado, nem bastante longo para ser infinito.”

Quando Camões me surgiu nas brumas do entendimento, julguei ver o próprio gigante Adamastor, rebelado contra Júpiter e tornando o mar seu campo de batalha:

“Contar-te longamente as perigosas

coisas do mar, que os homens não entendem,

súbitas trovoadas temerosas,

relâmpagos que o mar em fogo acendem,

negros chuveiros, noites tenebrosas,

bramidos de trovões que o mundo fendem…”

Ele viveu, na verdade, sua heróica poesia, e sem descer ao Inferno, sofreu “naufrágios, perdições de toda sorte”, para enriquecer a flor tumular do Lácio de seu colorido provençal, da força, da dutilidade e da harmonia com que hoje se entendem mais de setenta milhões de almas. Elas repetem em Timor, em Goa, em Singapura, nas partes mais estranhas da terra, as palavras do poema das algas marinhas, o bramir dos rochedos negros e as imprecações dos fantasmas que correm desvairados pelo dorso das vagas.

Veja o Cabo das Tormentas, aparecendo ameaçador no horizonte, com sua cabeça selvagem, o rosto carregado, encovados os olhos, crespos os cabelos, negra a boca, amarelos os dentes; e logo Vênus, marchando agitada, pelos caminhos do céu, indo render queixas a Júpiter e levando no corpo sensível de deusa o estímulo vital da onda de que nascera; e vejo Inês de Castro, a que depois de morta foi rainha, bela e triste de amor e saudade, murmurando, através dos campos do Mondêgo, o nome do seu príncipe, querido pelas ninfas, cujas lágrimas deram vida a uma fonte; e julgo ver Pacheco, o Aquiles Lusitano e Albuquerque terrível e Castro forte, todos aqueles que, ultrapassando os Argonautas e os heróis de Tróia, se perfilam ao clarão do incêndio e ao centelhar das armas que conquistaram a Índia, as ilhas de mel e sereias, a África, a Ásia.

“E se mais mundo houvera, lá chegara”.

Um dos milagres do gênio camoneano é o de criar, simultaneamente, a grande poesia geográfica e a mais suave poesia lírica, justamente em um dos momentos decisivos de expansão do ocidente europeu. O mundo do sobrenatural, o planisfério deserto onde se escrevia – “Hine sunt leones” – coincidia com o mundo geográfico ignoto. E ao tentar a aventura das descobertas, repudiada em Salamanca e exaltada em Sagres, os heróis dos comandos de D. Henrique e do Gama desafiavam as potências diabólicas que, emboscadas no sorvedouro do “Não”, guardavam zelosamente o seu domínio. Era o mar aberto e largo, “bom para o esforço e para a façanha, todo horizontes, como a esperança, todo caminhos, como a vontade”.