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Camões lírico (2-2)

Autor de Os Lusíadas, considerado por muitos o significativo e ambicioso poema jamais escrito em Língua Portuguesa, Camões (1524-1580) é enfocado aqui pelo estilista Edgar Barbosa (1909-1976) em sua performance lírica

*Edgar Barbosa

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Já se disse que “Os Lusíadas” tanto podem ser uma grande epopeia impregnada de lirismo, como um admirável poema lírico impregnado de epopéea. Pois é bem certo que Camões independe da estrutura dos gêneros literários e sua lira possui todas as cordas. Porque muito amou, porque muito sofreu, o amor e o sofrimento sempre tiveram nele claro intérprete e testemunha – e de sua obra uma pena eclesiástica escreveu, com o mais nobre acerto, que era uma “enciclopédia poética de amor”.

Mas, não é só isto. Ela é uma das maiores construções do Renascimento, época daqueles espíritos geniais que reconstituíram a vida humana em todo seu esplendor, exumando-a do sepulcro trágico, embora maravilhoso, da Idade Média. Camões ainda hoje floresce como um extraordinário revelador de beleza, e em sua poesia se espelha toda a claridade, toda a pureza dos templos helênicos, que ele arrancou das ondas dormentes do Mediterrâneo para a fúria sonorosa das águas do Oceano.

Homem investido de toda ação e de toda paixão, menestrel da era clássica e trovador da idade moderna, amante romântico da mulher e enamorado épico da Pátria, Camões foi também um soldado da Cristandade. Mas, o seu cristianismo, tal como o compreendeu Capistrano de Abreu, não era dogmático e sim etnológico e militante. “A Religião afigurava-se-lhe um elemento de nacionalidade, uma separação dos maometanos que, na história de Portugal e de toda a Ibéria, em Ceuta, na Índia, em todos os passos do seu viver cheio de acidentes, encontrava sempre inimigos hereditários da sua nação. O seu catolicismo era militante e a fibra militar se fez bem profunda e vigorosa no espírito do Poeta. Ele mesmo conjuga – o braço às armas feito e a mente às musas dada – e os que primeiro o retrataram lhe puseram, de envolta com os louros que colhera nas lides da Poesia, a armadura que tantas vezes cingira nas peripécias dos combates”.

Supomos haver sido esse estado permanente de Fé que transforma Camões, o último dos grandes épicos, no primeiro dos grandes líricos. Todos quantos têm procurado vislumbrar, na sua obra, a marca da sua alma, Teófilo Braga, José Maria Rodrigues ou o inglês Guilherme Storck, nos falam insistentemente do seu talento lírico, das suas tendências subjetivas, de um cérebro atormentado em que as idéias fermentam ao mais leve contato das emoções e de uma boca em que as palavras pululam, transbordantes. O próprio poeta confessara:

“Outros farão grandíssimas memórias.

De feitos, de batalhas conquistadas;

Eu as farei se for no mundo ouvido

De só como de uns olhos fui vencido”.

Em outra passagem das Rimas (“conquanto não pode haver desgosto, onde esperança falta”), ele se queixa de um mal.

“que dias há que n’alma me tem posto

um não sei quê, que nasce não sei onde,

vem não sei como e dói não sei por que”.

Camões é um mundo e o seu lirismo conflui no vasto rio de poesia erótico-mística cujo nascedouro é a estética platônica dominante na filosofia popular da Itália (Petrarca), da Espanha, (Juan de Mena) e de Portugal, durante o século XVI. Em Camões esse misticismo que cresceu distante da terra natal, com o

“Amor da Pátria, não movido

De prêmio vil, mas alto e quase eterno”.

esse misticismo apaixonado e penumbroso, encarnou as mais genuínas condições do espírito português do seu tempo. Era, na alma estarrecida dos navegadores um confuso estado de aspiração indefinida, de amorosa nostalgia, de saudade, “o mal de que se gosta e o bem de que se padece”, na definição, de D. Francisco Manuel de Melo. era também, na alma sutil de Camões, o idealismo nervoso e tímido, a quem se impõe o dever de apartar por um instante os olhos da realidade, para que esta permaneça:

“Uma cousa, Senhor, por certa assêle,

Que nunca amor se afina nem se apura,

Enquanto está presente a causa dele”.

E outro motivo ainda se nos depara, este revelado no Canto Décimo do poema, ao referir-se Camões a uma geração que o não entende, a um tempo infenso ao sentimento da Arte, a uma corte fútil que se apaixonara pela campanha de D. Sebastião na África:

“Não mais, Musa, não mais, que a lira tenho

Destemperada e a voz enrouquecida,

E não do canto, mas de ver que venho

Cantar a gente surda e endurecida.

O favor com que mais se acende o engenho,

Não no dá a Pátria, não, que está metida,

No gosto da cobiça e na rudeza

Duma austera, apagada e vil tristeza”.

Refugiou-se, então, nas suas lembranças magoadas e amigas, no seu passado de Quixote marinheiro, na saudade daquelas que amara em sua peregrinação pelas cidades longínquas.

“Coitado! Que em hum tempo choro e rio;

espero e temo, quero e aborreço;

juntamente me alegro e me entristeço;

confio de uma cousa e desconfio.”

No seu último e extremo desterro – conta-nos Afrânio Peixoto – Camões naufragou em viagem de Macau para a Índia. Salvando a custo a vida e salvando “Os Lusíadas”, perdeu entretanto aquela a quem chamaria “alma minha gentil” e “perpétua saudade de minhalma”. Nasceu dessa desventura o “Poema de Dinamêne”, que é sem dúvida a antologia dos seus místicos sonetos e a mais autêntica das fontes líricas de Camões.

Dentre as múltiplas edições das “Rimas”, dos “Sonetos”, das “Comédias”, e até de composições esparsas, os versos de Dinamêne sobrevivem como preciosos salvados do eterno naufrágio que foi a vida do Poeta.

Entretanto, é a essa ignorada e infeliz deidade oriental, chinesa, indú, filha das ilhas selvagens ou simplesmente Dinamêne, alçada à mortalidade sem batismo e sem pressentimento, que Camões dedica seus mais piedosos e sofridos sonetos:

“E se meus rudos versos podem tanto,

Que possam prometer-se longa história,

De aquele amor tão puro e verdadeiro,

Celebrada serás sempre em meu canto”.

Um dos mais notáveis camonistas, Storck, pesquisou pacientemente na poesia de Camões todos os nomes de mulheres, para encontrar o da preferida dos amores do Poeta. e entre nomes e apelidos verdadeiros, pseudônimos em anagrama ou em figuras de pura convenção, de Catarina de Ataíde a Violante de Andrade, de Nise a Leonor e a Silvana, passando por todas não conseguiu descobrir Dinamêne. E todavia foi ela só a que lhe mereceu a série de sonetos mais castos e apaixonados da poesia portuguesa.

Eis o primeiro, que é o soneto de número XXXV da edição de Faria e Souza:

“Um mover de olhos brando e piedoso,

Sem ver de quê; um riso brando e honesto,

Quase forçado; um doce e humilde gesto,

De qualquer alegria duvidoso.

Um despejo quieto e vergonhoso;

Um repouso gravíssimo e modesto;

Um pura bondade, manifesto

Indício da alma, limpo e gracioso;

Um encolhido ousar; uma brandura;

Um medo sem ter culpa; um ar sereno;

Um longo e obediente sofrimento:

 

Esta foi a celeste formosura

Da minha Circe, e o mágico veneno

Que poude transformar meu pensamento”

José Maria Rodrigues pergunta: – “De quem se trata? Naturalmente de alguma estonteadora formosura oriental, que, com a sua aparente impassialidade, tão profunda revolução produziu na alma do Poeta. Do que não resta dúvida é de que Camões trazia consigo a sedutora Circe, quando naufragou na costa da Cochinchina e aí a viu perecer afogada, sem lhe poder valer”.

Dinamêne, sobre cujo mistério há o estudo exato e minucioso de Afrânio na introdução escrita para o Poema, é a precursora de todos os amores orientais que vieram a ser, três séculos depois, o encanto da literatura romântica e da aventura real. Torna-se a ascendente clássica de madame Chrisanthéme e de Madame Butterfly. Passeia nos jardins de algum templo nipônico ou às margens dos regatos onde se debruçam os salgueiros. Por uma de suas irmãs, o português Venceslau de Morais, romancista e poeta, abandona a pátria e vai viver no Japão. Aluísio Azevedo morre de saudade de outra, a sua “Sato”, que o não pudera acompanhar ao Brasil. Virginia, Haydée, Átala, Aziadê, heroínas de Byron, de Chateaubriand, de Loti, e de farrére, todas soluçam as suas súplicas e escondem, nos olhos amendoados, a alma de Dinamene. Porque o seu Poeta está em toda parte, como o seu poema, que um Bandeirante brasileiro encontrado em agonia nos sertões paulistas, em anos do século XVII, levava em sua sacola de sonhador.

Já vai longa a empresa a que me abalancei e, para concluí-la, permiti-me que repita ainda: – Camões é um mundo, é aquele oceano dantes tão escuro e que ele, cantando, inundou de luz ofuscadora. Luz do sol de Deus e dos raios do Olimpo, orquestração de clamores dos ventos, gritos de comando, ânsia de novas terras, vozes de novas gentes, o sussurro das selvas e a revolta do mar.