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Cana pendoada*

Colaborador de Navegos resgata crônica de poeta amazonense sobre sua passagem por Ceará-Mirim e Natal de 70 anos atrás. Uma preciosidade para estudiosos e pesquisadores da cultura potiguar no século passado.

*Thiago de Mello

(além de outros pendões)

(Rio Grande do Norte. Por gentileza da Panair do Brasil) – Dentro de duas ou três horas, quando a tarde estiver madura, vamos deixar este belo vale do Ceará Mirim e com ele o Rio Grande do Norte, em cuja capital, ao entardecer de ontem, tive uma das mais esplêndidas visões do mar, do alto da colina onde se ergue o velho edifício da Cadeia. A gente potiguar é alegre e simples e gosta de vagabundar pelas ruas, que são largas e fresas, e pelas bordas do mar ou do rio Potengi, cuja foz, ou barra, marcada pelo velho forte dos Reis Magos, é um dos espetáculos mais bonitos que a cidade oferta aos visitantes. Mas não é só a paisagem que conquista, Natal tem outros encantos. Por exemplo as moças passeando nas praças; a moda dos cabelos curtos ainda não foi adotada por todas: de sorte que há lindas raparigas, muitas delas em flor, com os seus cabelos compridos e negros, avançando pelas ruas como se fossem barcaças embandeiradas. Outro espanto, do qual o potiguar muito se gaba – e com razão – são as peixadas da cidade. Pondo de parte as preparadas por minha mãe e as da casa do meu querido João de Paula, em Manaus, não conheço peixada melhor do que a da Comadre. em cuja casa (“Peixada da Comadre”, assim mesmo) saboreamos uma cavala ao escabeche, ainda cheirando a mar, e que foi um dos grandes regalos desta vida. Seria injustiça não fazer referência aos caranguejos (vindos de avião de Fernando de Noronha) preparados na “Peixada do Arnaldo”, que, como também a da Comadre, fica no bairro chamado das Rocas, onde, aliás, nasceu e se fez o doutor Café Filho.

Por falar no Dr. Café Filho, o cronista (que está registrando fielmente, e a seu modo, as impressões que teve de Natal) se sente na obrigação de informar que o prestígio do Presidente aqui nas Rocas – como, de resto, em todo o Estado, senão em todo o país – está sofrendo certo abalo. Ouvi queixas. Principalmente em matéria de estradas, de melhoramentos em sua terra natal. Na verdade, o Presidente não construiu um metro de estradas aqui por estas plagas. Mas não vamos estragar a crônica, falando de política. Vamos falar de coisas melhores.

Como, por exemplo, do passeio que, com o capitão de campo Trajano, fizemos hoje de manhã, a cavalo, por boa parte do vale do Ceará Mirim. Percorremos os canaviais, paranda aqui e alí, para olhar os trechos, ou os partidos, onde a cana pendoou. É a uma haste que se ergue, sem aviso e impressentida, do alto do pé de cana, alteando-se dois ou três metros, e em cuja estremidade a espiga se desfralda, como uma palma dourada – é a isso que se dá o nome de pendão de cana. Dizem os entendidos (entre os quais o jovem e competentissímo professor Strauss, mestre na Escola de Agronomia da Universidade do Recife e um especialista em solos a quem tive o prazer de conhecer) que a cana pendoada não se desenvolve mais: o pendão seria o sinal de que estava findo o ciclo vegetativo da cana. Esta também é a opinião do velho capitão de campo Zé Benedito, a quem encontramos hoje em nosso passeio matinal, e que foi, por mais de vinte anos, o principal capitão da Usina São João, que é a maior e sobretudo a de campos mais belos de toda a Paraíba. Acha Zé Benedito que “é uma pena quando chega o pendão”. Capitão Trajano, porém, tem opinião diferente. Diz que, mesmo pendodada, a cana ainda cresce um tanto; e me prometeu tirar isso a limpo, definitivamente. Eu não acho e não digo nada. Ou só digo que o canavial de pendão é uma das coisas mais bonitas que meus olhos já contemplaram neste mundo de Deus. Agora mesmo, deste alpendre da casa-grande, onde escrevo, estou vendo lá em baixo, no vale, um partido de cana todo cheio de pendão. Rebrilhando ao sol, as palmas douradas oscilam, parecem milícias avançando sobre o campo verde.

Disse lá em cima que seria injustiça não falar dos caranguejos do Arnaldo. Injustiça maior não seria fazer a referência e o elogio do camarão que acabamos de saborear, aqui neste nosso almoço de despedida do Ceará Mirim. O camarão foi pescado ao rio Água Azul. O preparo foi obra de Camila, vulgo Chiquinha, que o serviu ao molho de côco verde.

*”Contraponto” – “O Globo” (sexta-feira, 3/6/1955)

NOTA DE REDAÇÃO: o roteiro de gastronomia de frutos do mar relacionado pelo poeta amazonense ainda existe na capital potiguar.