*Francisco Alexandro Soares Alves
O artigo Esplendor da obra esconde a miséria do artista veio ao encontro de alguns problemas que têm ocupado meu pensamento hoje. Antes de expor estas inquietações desejo contextualizar o primeiro parágrafo do referido artigo.
George Steiner comenta sobre uma frase supostamente wagneriana: “Devemos queimar os judeus vivos!” Primeiro, a frase não é de Wagner. Segundo, o momento descrito por Steiner, da composição de Parsifal, sem dúvida é uma época das mais antissemitas de Wagner (Bismarck havia derrotado a França na Guerra Franco prussiana, em 1871, e já se encaminhava para a unificação da Alemanha, em 1876, sonho milenar teutônico), o que não o impediu de ter Hermann Levi, judeu, como regente da estreia e Paul von Joukowski, também judeu, como decorador e cenografista da primeira montagem de Parsifal. Nesse jantar específico, os convidados eram Judith Gautier (filha de Théophile), um amigo, também francês, da escritora e Nietzsche. Gautier teria um caso amoroso com Wagner e foi sua musa na composição de Parsifal. A frase chocante que embaraçou o jantar não fazia referência aos judeus. Estavam conversando sobre Bismarck e sua campanha contra os franceses. Quando o jovem amigo de Gautier afirmou que os franceses tinham direito à Alsácia-Lorena, Wagner dispara: “Paris deveria ser incendiada!” Nietzsche tremeu; o amigo de Judith baixou a cabeça; Judith e Cosima Wagner sorriram… Judith também seria autora da primeira biografia sobre Wagner.
Por fim, a frase “Devemos queimar os judeus vivos!” ou alguma variação dela, podem ser encontradas em muitas obras alemãs, como, por exemplo, em: Sobre os judeus, de Lutero ou na peça Natam, o sábio, de Lessing.
Agora, às inquietações.
O cancelamento é contra a inteligência e contra a sensibilidade. É a ação de baixa vingança de gente sem talento, que asseguradas por questões identitárias, clama o ataque e a destruição de obras de arte e de artistas que não compactuam com sua visão de mundo.
O problema, além da ignorância, que é o ópio dos incapazes, também é sobretudo de hermenêutica.
Como é possível julgar a avaliar vidas de séculos passados através de paradigmas modernos? A resposta é óbvia: não é possível.
Richard Wagner, Arthur Rimbaud, Fernando Pessoa, Monteiro Lobato, estão entre os homens mais notáveis e inesquecíveis de suas artes. São homens que modificaram e engradeceram nossa forma de pensar e de sentir; são homens profundos, artistas dificilmente igualados. Suas obras são dignas de tudo o que considerarmos nobremente humano.
Todavia, hoje esbarramos em novas perspectivas epistêmicas para analisar esses e outros homens notáveis do passado.
Essa epistemologia nova, que alguns denominam de epistemologia africana ou negra ou afro centrada, tem gerado atitudes políticas inconsequentes e, em sua mais radical forma, anticientíficas.
É o cancelamento. Que pode se manifestar em destruição de monumentos e de obras de arte, na revisão de textos clássicos e na proibição de obras de arte. É um espelho distante da Entertate Kunst hitlerista.
E novamente a pergunta: como é possível julgar a avaliar vidas de séculos passados através de paradigmas modernos? A resposta é óbvia: não é possível.
E como essas grandes figuras já estão mortas, o caminho é a ataque virulento ao seu legado artístico e intelectual.
Eu sou contra que se revisem os textos de Lobato para que se adéquem ao paradigma social contemporâneo. Se o texto de Lobato contém elementos racistas, que sejam estudados adequadamente em sala de aula, que sejam contextualizados, mas nunca banidos.
Eu sou contra o cancelamento de Rimbaud. Mesmo que ele tenha sido traficante de escravos e em suas cartas trate os africanos como animais fedorentos e inferiores, concepção também partilhada por seu ex-amante Paul Verlaine. A poesia de Rimbaud está entre as mais sublimes do século XIX e é uma das fundadoras da poética moderna.
Eu sou contra o cancelamento de Richard Wagner em Israel. O antissemitismo de Wagner é europeu. A Europa inteira, incluindo Karl Marx e com isso toda a esquerda revolucionária, era antissemita. Houst Stewart Chamberlain e Conde Gobineau, duas bases teóricas da direita hitlerista, eram antissemitas. Qual grande nome europeu do século XIX não foi antissemita? Porém em Israel só se cancela peremptoriamente o Mestre de Bayreuth.
Eu fico admirado como ainda não cancelaram Pessoa. Talvez pela facilidade quase prosaica com que muitos leem Alberto Caeiro, se esquecem que Pessoa foi fascista, apoiador da ditadura militar portuguesa e mesmo nas poesias de Caeiro, ali mesmo, mas bem escondidinho, se encontra um desprezo social pelo mais pobres e pelo socialismo.
E muitos são os exemplos de artistas e de intelectuais que estão sob o risco de um cancelamento ideológico burro. Não me interpretem mal, mas representatividade e cancelamento não são categorias artísticas sérias.