• search
  • Entrar — Criar Conta

Carpe diem (mas de nada adianta o novo, sem qualidade)

Um artigo de Horácio Paiva, poeta e membro do IHGRN e da UBE/RN e presidente da Academia Macauense de Letras, sobre as odes horacianas.
*Horácio Paiva 
Suponho fundamental conhecer o velho para criar o novo. Nisto coloco a memória em duas de suas realidades: a coletiva e a individual. É preciso trilhar o caminho do conhecimento, da memória coletiva milenar, como digo nesse haicai “Flauta Milenar” (gosto de titular os haicais, à moda de seu introdutor na literatura hispânica e no Novo Mundo, o mexicano José Juan Tablada):
não importa se nasci ontem
tenho uma flauta milenar
conheço o caminho
Há, porém, algo mais importante que simplesmente o novo: a qualidade da obra. Pois de nada adianta o novo sem qualidade. Sem esta, seria o novo meramente ilustrativo. Ezra Pound destaca os inventores e os mestres. Aqueles, os que descobriram um novo processo, ou cuja obra nos dá o primeiro exemplo conhecido de um processo, e, estes, os que combinaram um certo número de tais processos e que os usaram tão bem ou melhor que os inventores¹.
Clássico latino da antiguidade, Quintus Horatius Flaccus, ou simplesmente Horácio, reúne essas duas categorias: foi inventor e mestre. Além de grande mestre na expressão verbal e em sua precisão (muitos de seus versos se tornaram verdadeiros provérbios), foi um inovador em sua época. Ele mesmo o diz, no memorável poema “Aere Perennius”:
Sim, hão de celebrar-me
por ter sido o primeiro
a usar o metro eólio na poesia itálica.
Sobre ele escreveu o poeta e tradutor Péricles Eugênio da Silva Ramos: “Horácio é poeta de notável acabamento formal e de uma felicidade de expressão que tornou proverbiais muitas de suas frases. Sua influência tem sido poderosamente ampla na poesia ocidental, de um de cujos assentos bem altos ele continua inarredado; dos líricos de Roma, é talvez o único de nível realmente helênico.”²
Com efeito, o “nível helênico” advém de sua própria formação, da esmerada educação que recebeu em dois avançados centros da civilização antiga: Roma e Atenas. Dos gregos herdou, também, o seu perfil filosófico, notadamente epicurista, sem faltar-lhe, entretanto, fundamentação estoica, sobretudo em escritos de cunho político ou patriótico.
E é certo que a sua influência até hoje é constatada na literatura ocidental. Tomemos como exemplo notável em nossa língua, transcorridos dois mil anos, Fernando Pessoa, das odes horacianas de Ricardo Reis (um de seus famosos heterônimos).
Filho de um liberto, certamente agregado à tradicional gens Horácia  –  que dera a Roma, no passado, alguns de seus ilustres heróis: Horácio Cocles, que defendeu, sozinho, uma ponte romana assediada pelo exército inimigo, e os três célebres irmãos Horácios que representaram Roma, com vitória, na disputa contra Alba Longa  –  nasceu o poeta Horácio em Venúsia, no ano de 65 a.C., e faleceu em Roma, no ano 8, também antes de Cristo, faltando-lhe poucos dias para completar 57 anos. Viveu o fim da República e o começo do Império. Era republicano e pela República lutou (como tribuno militar e comandante de uma legião romana) e foi derrotado ao lado de Brutus, em Filipos, Grécia (42 a.C.). Anistiado, tempos depois, retornou a Roma, reconciliando-se com o então imperador Otávio Augusto*, através dos amigos comuns Vergílio e Mecenas. Mas a partir daí preferiu, à agitação de Roma, a vida do campo, recolhendo-se à sua propriedade rural (que lhe presenteara Mecenas) nos montes Sabinos, onde escreveu grande parte de sua magnífica obra poética, “um monumento mais duradouro do que o bronze”, no dizer de um de seus versos do “Aere Perennius”.
Lembrar o notável poeta leva-me à releitura de seus poemas, sobretudo daqueles que maior efeito estético operaram em meu espírito, ao longo dos anos. Como essa ode dedicada ao seu amigo Séstio, onde reflete sobre a brevidade da vida, obstáculo à longa esperança, que guardo na memória desde a juventude, traduzida por José Lodeiro³, e aqui em sua parte final:
PARA SÉSTIO
Ó feliz Séstio,
a brevidade da vida
nos impede alimentar
uma longa esperança.
Em breve a noite pesará sobre ti,
e os Manes da fábula,
e a casa estreita de Plutão,
aonde uma vez tenhas chegado,
não sortearás pelos dados
o reinado do vinho…
E sobretudo essa, a ode 11, das mais citadas e famosas, encontrada no Livro I de suas CARMINA, atualíssima, notadamente pela expressão constantemente repetida através destes dois últimos milênios, CARPE DIEM, a seguir transcrita na tradução livre que fiz para português (embora insuperáveis o original e o latim, língua mãe, sobretudo pela concisão):
ODE 11
Não indagues, ó Leucónoe, ímpio é saber
qual fim reservarão, a mim ou a ti, os Deuses,
nem te prendas à numeralogia babilônia.
Melhor tudo suportares, quer te dê Júpiter
Muitos invernos ou apenas este último que agora
se desfaz nos penhascos do mar Tirreno.
Sê sábia, o vinho decanta e ajusta
a longa esperança à vida breve.
Enquanto conversamos, foge invejoso
o tempo: colhe o dia de hoje, crendo
o mínimo possível no amanhã.
Ode assim concluída com chave de ouro, no saboroso texto em latim: “Dum loquimur, fugerit invida aetas: carpe diem, quam minimum credula postero”…
A expressão CARPE DIEM (colhe ou aproveita o dia), contida no final do poema, é ainda muito citada, sobretudo na mídia, incorporada até mesmo a propagandas de produtos comerciais. Mas atenção para o seu correto entendimento, extraído do universo da obra de Horácio. Horácio situava a regra do bem viver no meio termo encontrado no conjunto das oportunidades apresentadas. A felicidade estaria no equilíbrio, na aurea mediocritas (no viver “medíocre”, palavra tomada em sua acepção original, isto é, no viver com moderação), e não no prazer instantâneo, aproveitado sem consideração a qualquer consequência ou custo moral. Neste caso, era um adepto das teorias do grego Epicuro e não um hedonista. Tal maneira de pensar, numa comparação distante, de índole religiosa, mas não despropositada, se a adaptamos à filosofia, lembra-nos Buda, que ensinava a sabedoria encontrar-se no caminho do meio. E às vezes, em mera divagação intelectual, imagino e me interrogo sobre os efeitos morais e estéticos que o cristianismo teria exercido na obra de Horácio, falecido pouco antes do nascimento de Jesus Cristo, houvesse ele vivido em período posterior a seu advento.
“Carpe diem” (colhe o dia) é uma expressão aberta e sugere diversos caminhos, além da fórmula horaciana de resultado. Um deles é o do simples prazer. Outro, o da sabedoria… ou o da iluminação.
Nota
(*) Depois Horácio celebraria a vitória de Otávio Augusto, na célebre batalha de Actium, sobre Marco Antônio e Cleópatra, com a ode 37, cujos versos iniciais (na tradução de Ariovaldo Augusto Peterlini) (4) são antológicos e contêm outra expressão muito repetida tempos afora, nunc est bibendum – agora é hora de beber, celebrar:
Agora é bebermos, agora é pulsarmos,
sem peias nos pés, este chão e aos coxins
dos Deuses levarmos a sália oferenda.
Referências bibliográficas
1 –  Pound, Ezra  –  ABC DA LITERATURA (Editora Cultrix, 1973, 2ª edição)
2 –  Ramos, Péricles Eugênio da Silva  –  POESIA GREGA E LATINA (Editora Cultrix, 1964, 1ª edição)
3 –  Lodeiro, José  –  TRADUÇÃO DOS TEXTOS LATINOS (Editora Globo)
4 –  Novak, Maria da Glória e outro  –  POESIA LÍRICA LATINA (Editora Martins Fontes, 1992, 2ª edição)