*Cléber Pacheco
Mui honrado e digno fidalgo Miguel de Cervantes Saavedra,
Dentre todos os personagens, o único que real[1]mente deveria escrever ao seu autor sou exata e justamente eu. Nem poderia ser diferente. Nenhum outro personagem foi tratado de modo mais sublime e cruel do que este que vos escreve.
Não raro fiquei indignado com vossos relatos. Não raro quedei-me pensativo, indagando quais seriam as vossas intenções ao descrever todos os sucessos de minha valerosa e patética existência. 15 Já não sei se primo por minha honradez ou ridículo, proclamando o direito de sê-lo ou se simplesmente recolho-me em minha biblioteca em busca de novas narrativas cavalheirescas e donzelescas, contanto que os protagonistas dessas histórias sejam outros que não eu. Ou se me aventuro a salvar-vos desta horrível e medonha prisão à qual vós tendes sido injustamente condenado.
Por certo outros escrevinhadores sofreram e sofrerão perseguições e enfrentarão atitudes vis e difamatórias. Meu receio maior, todavia, seja, quiçá, o de que personagens possam vir a ser tratados de modo ainda pior do que o meu. Se isso é possível. Assim sendo, encerro esta breve missiva deixando-vos expectante quanto à minha decisão, colocando-a em suspenso para que tal sirva de lição a todos aqueles que ousarem d’ora em diante tornarem-se autores.
Assinado Dom Quixote de La Mancha.
