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Cascudo sem discípulos

Há 34 anos falecia em Natal, na Casa de Saúde São Lucas, o polígrafo Luís da Câmara Cascudo. Autor do monumental Dicionário do Folclore e de Civilização e Culttura, as data não foi lembrada por nenhuma das nossas instituições culturais. O único registro veio de sua neta, Daliana Cascudo, que dirige o Instituto Ludovicus, que preserva e guarda sua memória e sua obra. Abaixo texto do Fundador de Navegos, autor do livro ainda inédito Cascudo no Planeta Hemp.

*Franklin Jorge

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Todos já fomos surpreendidos com afirmações que seriam cômicas não fossem emitidas com aparente seriedade por articulistas pouco informados acerca de questões que se lhes deparam no exercício da opinião. E que jamais são contestadas porque parece haver um desconhecimento generalizado sobre alguns assuntos, como o próprio escritor Luís da Câmara Cascudo, muito citado e pouco lido, sobretudo por jornalistas que assim se calam diante de absurdos.

Freqüentemente, quando tratam de pessoas que exploram a cultura popular como assunto privado, cometem equívocos e erros de avaliação que depõem contra aqueles que, de boa-fé, pretendem exaltar.

Muitos insistem em nos impingir este ou aquele nome de folclorista, como sendo de legítimos sucessores de Luís da Câmara Cascudo, exaltação inócua e inverossímel, na qual desacreditamos mal se faz enunciar em artigos laudatórios que no jargão das redações chamamos de “enchimento de lingüiça”; enfim, algo inteiramente sem importância, que se faz pela urgente necessidade de preencher espaços vazios em páginas de jornais.

Ora, qualquer leitor que conheça o universo provinciano e não seja parvo de nascença, sabe perfeitamente que Cascudo não deixou sucessores, além do que toda comparação perde o sentido quando não está apoiada em dados confiáveis.

Chego até a ir mais longe, acrescentando que ele sequer deixou discípulos, o que nos levaria a admitir a existência de pesquisadores, além de qualificados, fornidos de algo mais consistente do que a mera boa intenção ou a vaidade de se fazer notar, embora sem mérito, que entre nós prolifera como matapasto e esclarece, duma maneira por vezes ridícula e exaltada, o questionável espírito provinciano que domina setores da inteligência.

Um sucessor de Cascudo seria em princípio uma pessoa aparelhada de uma profunda ciência capaz de superá-lo. Segundo a tradição corrente desde tempos imemoriais, sabe-se que um discípulo é obviamente alguém que se prepara para ultrapassar o mestre, como prova de que aprendeu e ampliou o conhecimento, o que em resumo significa dizer, em prosa vulgar, que os verdadeiros discípulos são tão raros como cisnes negros.

Ademais, exalta-se Luís da Câmara Cascudo pelo que há nele de menos relevante – o folclorista –, não obstante ser ele, como tal, um nome de merecimento universalmente reconhecido. A verdade é que ninguém ainda o superou, em profundidade e abrangência de conhecimento, nesses estudos ditos do folclore, a que ele atribuiu uma grandeza e uma objetividade de que os demais, em sua maioria diluidores, são carecidos, algumas vezes por lhes faltar a necessária erudição e, por que não dizer, o talento e a persistência necessários para ir buscar e exprimir o pensamento com suficiência de conhecimento e, por que não? estilo.

Cascudo e Richard Wagner, para citar dois exemplos distantes, no espaço e no tempo, mergulharam no estudo da cultura popular, na condição de autênticos criadores dotados de excepcional talento para observar, analisar e interpretar as fontes pesquisadas; este, para criar uma música lírica que traduz o que existe de expressivo e maravilhoso na obra e no espírito dos seres humanos que plasmaram a Alemanha; aquele, para fundir em profundidade o popular e a erudição numa obra canônica da qual somos todos devedores, mesmo quando não o admitimos.

Nenhum dos dois criadores e mestres, seja Cascudo ou Wagner, procedeu servilmente, apenas copiando e difundindo cantigas de boi-bumbá ou lieds produzidos pelo povo alemão. Ambos chegaram montados no talento, mas também amparados e fortalecidos numa sólida grade de estudos multiculturais que fizeram deles o que são – mestres e faróis, na elementar acepção baudelairiana.

Este o diferencial cascudiano que incomoda e exaspera a inveja e o ressentimento de ruminadores sem pasto, como um fato digno de nota: — o seu processo de criação se reporta não apenas às brumas mitológicas da nacionalidade, mas ao triunfo sobre o ceticismo e o marasmo que corrói tanto quanto a ferrugem e a maresia.

 

 

Em destaque, detalhe da capa de Actas Diurnas, crônicas de Cascudo organizadas por Franklin Jorge, em edição de O Novo Jornal/FIERN, 1012; acima, capa de Prelúdio e fuga do real,livro de Cascudo preferido por Franklin Jorge, Editora Global, São Paulo.