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Censura ‘do bem’ enterra amélia musical

Politicamente correto influi de maneira corrosiva sobre a cultura, impondo padrões que empobrecem valores universais. Como prova disto, Chico repudia um clássico musical.

*Alexsandro Alves

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O músico Chico Buarque decidiu que não mais cantará sua música “Com açúcar, com afeto”, composta a pedido da intérprete Nara Leão.

Leão encomendou uma música que descrevesse uma mulher nos moldes da famosa Amélia, da canção de mesmo dos mestres Ataulpho Alves e Mário Lago.

A mulher, na canção de Chico, é uma dona de casa que é sempre enganada pelo marido, porém sempre espera por ele, embora este a engane, perambulando pelos bares da cidade. Quando chega em casa, a esposa já tem tudo feito: o jantar na mesa, a casa arrumada e o abraço caloroso de uma esposa sofredora, porém dedicada.

Esta mulher sofredora, que a propósito, a intérprete estadunidense Lana del Rey, também canta, foi motivo de queixas feministas, e por isso, o músico brasileiro não mais a tocará – nesse aspecto, Lana del Rey também é severamente criticada por feministas.

A estadunidense continua em seu estilo. Chico capitulou.

Sabemos que os tempos áureos da música popular brasileira já passaram faz tempo. Os grandes do passado, como Chico ou Caetano, já deram o que tinham que dar, e deram bem dado. Ou então vivem em situações escandalosas como Bethânia e os R$ 1,3 milhão da Lei Rouanet. Hoje o que temos são arremedos que se mantêm mais por suas posições políticas e midiáticas do que por qualidade artística. É só comparar Marisa Monte com qualquer outra: MM nunca se expôs politicamente, ao ponto de confundir sua arte com militância; nunca fez de sua arte uma bandeira partidária; porém, permanece. Porque tem talento.

Porém agora temos um novo problema que Chico Buarque, com sua atitude coloca, como uma espécie de jurisprudência.

A arte do passado, terá que ser moldada pelos problemas contemporâneos? E sendo assim, terá que sofrer interdições? Sobretudo se grupos exercerem pressão sobre o artista, este deve ceder?

Imagino então que quase toda a obra significativa de Chico terá que ser interditada, ou no mínimo, vir com alertas de gatilhos (esse mal que acomete pessoas que pensam que arte não é abismo): torturas, assassinatos, prisões, mães chorando seus filhos desaparecidos, suicídios, trocadilhos que mexem com o cristianismo e uma infinidade de temas semelhantes. Estas canções então estão apenas esperando que alguém as acuse.

É uma confusão em todos os níveis.

Além disso, é preciso também entender que há mulheres que se sentem bem assim, donas de casa, belas, recatadas e do lar. Há amélias e simones. Chico também comenta que, se “Nara fosse viva, também não a cantaria”. Bem, isso ele já não pode afirmar por ela.

E o que afirmamos por nós é: há uma invasão de autoridades alheias à arte impondo uma agenda cujas variações dependem de seus caprichos individuais. Essas autoridades, “celebridades”, se configuram imageticamente em um determinado padrão acêntrico e iniciam ataques contra a cultura. Então, para valer o “politicamente correto”, maquiam um contexto pretérito com tintas do presente e exigem o aniquilamento (i.e., “cancelamento” ou “interdição”) de obras e artistas ou monumentos do passado. O Black Lives Matter é um exemplo.

Não basta reivindicar igualdade, é preciso destruir o passado junto. Aqui no Brasil houve um arremedo do BLM. Um motoboy queimou a estátua de Borba Gato em São Paulo. Aqui no Brasil, claro, tudo é oswaldianamente antropofágico e acaba sempre em comédia. Nesse caso, o coitado do motoboy foi preso, não houve um único partido de esquerda que de fato tomasse as rédeas e assumisse a causa; ficou preso e o máximo que conseguiu foi umas mensagens em redes sociais, dessa esquerda que festeja o BLM estadunidense. Tragicomédia. Tristes trópicos.

Voltando ao caso Chico. A política, através de movimentos identitários, está promovendo o que sempre soube promover contra o país: o apagamento de nossa memória.