*Alexsandro Alves
Chovia. Na quinta-feira, 07 de julho de 2022, às 20:45, minha amiga Dulce das Neves Cosme desencantou-se e agora retorna ao pó de onde viemos. Nossa amizade iniciou-se em uma segunda-feira, 22 de janeiro de 2007, às 08:00 da manhã. Chovia. Por circunstâncias que não cabem nesse artigo, eu tentava proteger um filhote de gato da fina chuva que caía. Ela passou com algumas compras na mão e, vendo-me, disse: “Ei, desculpe, mas por que você não o leva para casa?”.
Expliquei o motivo. E com sua voz caracteristicamente suave, doce como seu nome, me falou: “Vai chover muito forte em breve. Venha. Coloque ele na minha garagem”. O gatinho, de cerca de um mês, ainda viveu algumas semanas, porém morreu. Mas durante esse tempo, em que ia na garagem para cuidar do bichano, conversávamos muito e descobrimos muita coisa em comum. Inclusive a nossa solidão em relação ao mundo. Durante todos esses anos, nossas árvores cresceram e cravaram raízes em nossos corações, nossos galhos se entrecruzaram de tal maneira, que quem nos via pensava que éramos amantes. Porém a amizade é maior do que o amor entre homem e mulher, ou entre homens e entre mulheres.
A amizade não é possessiva. As pessoas do mundo não conhecem nem o amor nem a amizade, porém daquele ainda têm algum resquício de conhecimento, mas desta última, poucos possuem; a amizade é mais refinada, íntima, duradoura, é o único sentimento, de fato, eterno. O amor pode surgir à primeira vista; a amizade só vem com o tempo, com o envelhecimento em carvalhos de qualidade, a amizade é o vinho mais caro da existência, e como tal, poucos podem afirmar que têm. O amor precisa da batalha na cama para se justificar; a amizade precisa apenas de caminhadas e risadas, de músicas e livros compartilhados, de cafés.
Éramos amigos. Éramos homem e mulher, e éramos amigos. Eram particularmente divertidos certos momentos. Por exemplo, quando Dulce estava com namorado, e eles tentavam compreendê-la. Eles possuíam o seu corpo, mas não sua alma. Certo dia, liguei para ela e disse-lhe: “Estou a manhã inteira cantando ‘Lindo Lago do Amor’”, e ela me diz: “Estou pensando nela agora!”. Naquele dia fomos caminhar e Dulce me disse: “Nós temos uma conexão, uma sintonia muito forte. Quantas vezes, Alex, quantas vezes, você olhou para mim e me disse exatamente o que eu pensava? Quantas vezes eu olhei para você e lhe disse exatamente o que você pensava? Muitas vezes!”.
Com o tempo nos tornamos um contraponto um do outro. A melodia que ela executava, eu respondia e vice-versa. A amizade era a harmonia, o baixo contínuo de nossa linha melódica. Nenhum amor carnal chega a esse ponto. Na verdade, precisa-se abolir a possessividade natural do amor para que isso ocorra. Pura e simples amizade, puro e melhor vinho da alma.
Porém tínhamos nossas diferenças. Dulce é bossa-nova cantada e tocada por João Gilberto, tranquila, serena, segura de si. Quando as pessoas faziam mal a Dulce, ela se afastava. Nunca se exaltou com seres ruins. Ela não sintonizava essa frequência. Ela possuía um controle e uma segurança de si estoicas, imperturbáveis, ao mesmo em que caminhava pela vida dançando, com a leveza de uma bailarina clássica.
E agora ela se foi. Eu imagino as possibilidades dessa nova solidão. Se certas doutrinas estiverem certas, ela reencarnará. Não sei quando. Eu imagino que demore essa reencarnação, de forma que ainda seja possível, quando eu pegar esse último trem, reencontrá-la e lhe abraçar espiritualmente, meu Deus, como choro agora. Porém se outras estiverem certas, ela simplesmente espera um dia final, do juízo. Então, que eu possa compartilhar o mesmo destino final dela, para permanecer com ela.
Por fim, se nada houver. Se morrendo o corpo, morre tudo, acaba-se tudo. Se não houver vida após a morte e nesse momento o pó que seu corpo torna for de fato o fim derradeiro.
Então, ainda resta a memória. Ainda resta o tempo e a memória no tempo. Então está em mim, que permaneço vivo. Todas as nossas alegrias, todas as nossas tristezas, todas as nossas contrariedades, todas as nossas concordâncias, toda a nossa vida aqui, é memória e tempo em mim.
Quando caminhar, agora solitário, pelos locais que caminhávamos, recordarei, Dulce. Chorarei e recordarei. E está tudo lá. Nos mesmos locais. Nossa presença. Nossa lembrança. Nossa vida que por lá passou aos risos, está lá. Invisível. Mas está. E mesmo chorando, é a alegria de ter vivido tudo isso, de ter deixado tanta coisa no tempo e na memória, que me vem agora. Por sua causa, amiga. Por sua causa.
Veja, e se nada disso estiver certo, nenhuma doutrina, e tudo for um eterno retorno, eu digo “SIM”. A minha vida inteira vale pelos momentos com você. Eu digo SIM. Sem nenhuma modificação, SIM.
Chove lá fora. E chove aqui dentro, muito. De dentro para fora. E a chuva que cai agora, cai no solo que te guarda. E cai nas lembranças que guardo.