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Chuva no milharal*

Colaborador de Navegos continua a surpreender nossos leitores con informações que hoje fazem parte da história ed enriquecem a memória de um município privilegiado por um seleto número de escritores que formam a chamada “Escola de Ceará-Mirim” e um plantel de péssimos políticos desprovidos de cultura e sem amor à terra e a homens ilustres pelo saber.

*Thiago de Mello

(Fazenda do Pegado, R. G. do Norte – Por gentileza da “Panair do Brasil”) – Era manhãzinha ainda, quando saímos hoje do Ceará-Mirim no rumo da Fazenda do Pegado, situada em zona já agreste, no princípio do sertão nordestino. Éramos cinco no automóvel: meu compadre Odilon; Aderson, gerente da Usina Ilha Bela; Trajano, perito capitão de campo; o antigo vaqueiro e lavrador hoje chofer que atende pelo apelido de Telefone; e o cronista. Com quarenta minutos de viagem, começaram a aparecer os primeiros sinais da caatinga. As pedras amontoadas, cinzentas. Os cardeiros, mandacarus. Toda estranha e áspera família de cactus. Os umbuzeiros e os juazeiros, estes me trazendo à memória trechos do grande Euclides (**). À margem do estreito e poeirento caminho, por onde avançávamos, erguiam-se, esparsos, casebres de sertanejos. Crianças corriam, morenas e rijas, iam abrindo as porteiras. Os tetéus, pássaros do sertão, erguiam-se das moitas, cruzavam a estrada, deixando ver, rebrilhando ao sol da manhã, a aguda e afiada garra que possuem na extremidade das asas. A medida que avançávamos, a terra ia ficando mais seca, os mandacarus mais numerosos e mais altos, a paisagem mais áspera.

Quando chegamos no Pegado, porém, de novo o chão nos ofertava, como em milagre, um verde irmão do verde do vale que deixaramos ao amanhecer. Eram os campos de lavoura da fazenda, onde, conforme o capitão de campo me ia contando, numa voz que vinha impregnada do simples orgulho de quem exibe uma obra de suas mãos plantaram-se cerca de cento e cinquenta hectares de cereais, destinado ao consumo do pessoal da Usina, que os adquire, através de uma cooperativa, ao preço de custo. A Fazenda é um milagre no meio do sertão. E acompanhados de Manoel, o jovem administrador, fomos percorrer os campos.

Para começar, o campo do feijão, já quase em véspera de colheita. O verde se estende, rasteiro e alegre, e se confunde na distância. Plantou-se este ano de fradinho e macassa – diz o bom Aderson e acrescenta em voz esperançada: – O céu tem sido amigo, e a colheita há de ser boa. Deus queira, respondo. E passo a me inteirar da vida, da história, dos nomes e das aventuras do feijão, em seu convívio e seus amares com a terra, com aquela terra esfarelada e cheia de pedras de erosão, terra que não parece ser lá de muitos amores. Não parece, mas tem dado muto de si a este feijão, especialmente ao macassa, e mui particularmente a uma variedade deste último, a quem os agricultores chamam de Riso do Ano. Decididamente a terra do sertão tem acentuadas preferências, em suas afinidades eletivas, pelo feijão Riso do Ano, nome que lhe grava a própria gratidão do sertanejo. Pois assim que chova, o homem desses campos corre a plantá-lo, certo de que três meses depois, ainda que a chuva seja escassa, não faltará feijão em sua casa.

Mas seria injustiça dizer que ele só gosta do Riso do Ano. Gosta também do feijão Macaína. do Casca de Seda, do Rabo de Tatu-Peba, do Várzea do Açu, e de outros mais, todos rosados e saborosos. Deixamos os feijões e nós fomos ao milharal. E foi no milharal que aconteceu esta coisa que vou contar, a qual, para mim, não passou de um gesto camarada do céu. Examinávamos os pé-de-milho, e o capitão de campo lamentava que o milharal andasse “tão pouco chovido”, e se tardasse muito a chover, a safra deste ano ia ser minguada. E nisso falávamos, atravessando o campo, eis quando, súbita e generosa, desaba uma pancada d’água. Lá do outro lado, o sol esplendia. Mas sobre o milharal e sobre as nossas cabeças, descia lá do alto aquela chuva forte e farta. Os pés de milho, verdes e bailando ao vento, se encheram de uma alegria que dava gosto ver. Alegria que também se alastrava em nossos corações, enquanto caminhávamos, a roupa ensopada, a água escorrendo pelo rosto, dentro da manhã nordestina.

*”Contraponto” – O Globo (quinta-feira, 2/6/1955)

Nota de redação: **Euclides da Cunha” (1866 – 1909), jornalista e escritor, autor do livro “Os Sertões”. Correspondente da Guerra dos Canudos (século XIX) pelo jornal “O Estado de São Paulo”. Adendo a postagem anterior: Thiago de Mello começa a publicar as crônicas sobre o périplo nordestino 13 dias após sair do Rio de Janeiro. E não 23, como afirmado. O Aderson referido na crônica seria eleito nos anos de 1960 Prefeito de Ceará-Mirimn, tendo construído o Palácio de Esportes local, que levaria o seu nome: Estádio Aderson Eloy de Almeida decorado com belas pinturas de Aécio Emerenciano, que seus sucessores deixaram se acabar.

Euclides da Cunha