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Cidadania utópica     

Jurista de renome e Colaborador de Navegos, põe em questão princípios que atribuem a realização humana à conquistar de bem-estar material, o que para ele n]ao seria possível sem respeito aos direitos humanos.

*Edilson Alves de França

Antes mesmo de ler “A cidadania que não temos”,organizado por Lourdes Covre, já desacreditava na efetividade do exercício da cidadania nos países subdesenvolvidos.   Nunca achei que a falsa ideia sugerida por alguns economistas de plantão, no sentido de que a realização humana poderia resultar de bases materiais, estava certa e iria concorrer para o efetivo respeito aos direitos humanos.

Logo se viu que os slogans fabricados em regimes passados, objetivando a crença num desenvolvimento material efetivo e estável, não passavam de encenações.   A certeza que restou, nesse campo, foi a de que o avanço material que se propalava confundiu-se com subserviência a economias poderosas.   Com as privatizações, podemos alcançar o quanto se pode ser pródigo no oferecimento de condições gerais, de infraestrutura, às megaempresas que correram em busca dos “pratos feitos”, servidos pela América austral afora.

A cidadania que, segundo alguns, decorreria do “avanço econômico” veio plenamente.   O povão, coitado, sequer chegou a perceber que, induzido à ampliação do consumo, deixava seus direitos fundamentais escapar pelos mesmos dedos que acionavam os eletrodomésticos que guarneciam o barraco inundado, queimado ou derrubado pela especulação imobiliária.

O pior é que, apesar de esforços isolados, os atentados aos direitos do cidadão aumentaram.   Hoje, não há dúvida, pode-se mesmo dizer que nos países subdesenvolvidos existe apenas três categorias: a) os que, sequer, conhecem a palavra cidadania; b) os que sabem que lhes são negados os direitos de cidadão; e, c) os que pensam que são verdadeiros cidadãos.

Aos primeiros, excluídos na exata expressão da palavra, falta tudo, inclusive o direito de nascer como cidadão, já que o moço do cartório insiste em cobrar pelos registros de nascimento, ainda que ocorram em estribarias e a criança tenha como berço tosca manjedoura.

Os do segundo grupo, alfabetizados ou titulados, ganhando um ou uns salários mínimos, têm consciência das suas prerrogativas sociais.   Sabem, portanto, que lhes estão sendo subtraídos o direito a um teto, à educação, à saúde, à segurança, à liberdade, enfim, a uma existência digna.  Estes, em face da evidência, sabem que não são cidadãos por inteiro.   Apenas aspiram sê-lo.

O terceiro grupo é formado, na sua maioria, pelos que trocaram a condição de cidadão pela de consumidor compulsivo.  Voltados para a busca do “ápice social”, que lhes propicie o carro importado e a mansão, sequer desconfiam que também estão sendo tratados como objeto e que, apesar de bem sucedidos materialmente, têm, todos os dias, a cidadania mutilada.

Sem estimar a gravidade e abrangência da mutilação de seus direitos fundamentais, esses quase cidadãos não atentam para o autoritarismo fazendário, por exemplo. Para as chicanas e ardis políticos.   Para o desrespeitoso ou abusivo comportamento da administração pública, dos bancos e das empresas que prestam serviços essenciais como água e luz.   Não alcançam o aviltamento dos seus salários ou dos seus proventos como agressão ao direito de viver dignamente.   Pior ainda, sequer atentam para os casos de denegação de Justiça.   Ou será que esses “cidadãos em pleno gozo de seus direitos”, não mais recordam-se do confisco da poupança levado a efeito há poucos anos atrás?

Naquela oportunidade, ao tempo em que esperávamos todos uma decisão que coibisse a irresponsável violência, que vidas e negócios que dependiam da poupança confiscada fossem poupados, o órgão da Justiça que nos podia socorrer permaneceu silente, letárgico, enquanto poupadores enfartados morriam nos hospitais, sob a dor maior do arbítrio, da denegação de Justiça.

Concluo, portanto, sem pedir vênia aos que, aposentados ou não, se achem no gozo efetivo dos seus direitos fundamentais que, ao atentar para a vasta tipologia e formas de direitos humanos, tenho dificuldade em identificar morador de qualquer país subdesenvolvido que, dotado de liberdade individual no mais amplo sentido, possa dizer que goza da plenitude desses direitos humanos fundamentais.

Edilson Alves de França é Procurador Regional da República aposentado e Professor do Curso de Direito da  [email protected]

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Pintura do belga René Magritte