*Alexsandro Alves
O segundo artigo dessa série, Busca, você encontra aqui.
I.
Erguer o olhar para Clarice e encarar seu olhar, muitas vezes vazio, é como silenciar ante uma multidão de sons confusos: o estranhamento e a solidão em que sua obra mergulha o leitor, pode lançar os mais desavisados em um vórtice vertiginoso.
A literatura de Clarice é única no Brasil. Sua obra dialoga com o seu tempo no mundo, mas não aqui. Aqui, ela não teve antecessores e nem tem sucessores. Quando digo que dialoga com o seu tempo no mundo, não é com os fatos em si, mas com o que se fazia no quesito literatura.
Porque no Brasil imperou e ainda impera, de certa maneira, uma atração pelo regionalismo. Na época de Clarice, ninguém escrevia, aqui no Brasil, como ela escrevia, nem em termos de forma nem em termos de conteúdo. É como se a sensibilidade da autora nascesse mesmo de si e não com o contato com o mundo exterior.
Lendo seus romances e contos, o que me marca mais é o desejo de seus personagens centrais de nada serem ou de se extinguirem ante questionamentos sobre a vida e sobre o seu lugar na vida, como G. H..
Essas personagens tendem para o silêncio e para o vazio, para uma região onde não há significante ou significado, uma região absoluta.
II.
Macabéa, de A hora da estrela, é a maior personagem de Clarice nesse aspecto. Ela praticamente não sabe nada. Quase sem referência. Fala pouco. Seu vocabulário é simples e direto e ela prefere responder perguntas com um sim ou um não. É uma personagem, portanto, avessa à literatura. Então, o que ela é? Em Macabéa, Clarice cria a maior de suas personagens, a mais completa, a mais enigmática. Macabéa é o desejo de Clarice de escrever música, é uma criação musical. Música absoluta.
Absoluta porque não precisa de palavras, nem de imagens ou de fatos históricos, seu conteúdo é sua forma, e sua forma é seu conteúdo, como a autora afirma em uma parte desse romance: a forma é que faz o conteúdo, essa frase, em um livro de história da música, poderia ser uma definição da fuga barroca ou da sinfonia clássica sem tirar nem por uma vírgula!
A hora da estrela é a música literária de Clarice e isso nunca foi pensado no romance pela literatura brasileira. O olhar de Clarice olha para o inatingível e para o inalcançável.
Tomemos o início do livro.
O autor, na verdade Clarice Lispector, dedica seu livro a compositores. Ele (ela), não cita um único romancista ou escritor. Schumman, e sua esposa Clara, Beethoven, Bach, Chopin, Stravinsky, Richard Strauss, Debussy, Marlos Nobre, Prokofiev, Carl Orff, Schönberg, dodecafônicos! Essa miríade de anjos musicais! Imagino a autora, após a audição desses compositores, escrevendo sua obra.
Desde o início, termos e expressões musicais definem cenas, comportamentos, sentimentos. Temos aí expressões como: allegro, brio, cantabile, que são termos usados para definir o andamento de movimentos sinfônicos. Dois momentos lembram as óperas Parsifal e Wozzeck, e Macabéa confunde Una furtiva lacrima, de Donizzeti, cantada por Caruso, com um samba.
III.
É através da música que Macabéa descobre, ou ao menos sente, que existem outras formas de sentir: o mergulho na vastidão do mundo musical que não carecia de se entender. Clarice chega ao ponto de afirmar, sobre Macabéa: o substrato último da música era sua única vibração. É o élan de Chopin, sua note bleaue tantas vezes procurada.
Mas se no século XIX esse desejo seria levado a sério, um certo sadismo de Clarice em maltratar suas personagens (e nisso ela lembra Richard Strauss, que ela cita no início do livro), torna Macabéa uma infeliz e triste anedota.
Porque para cada descrição poética que a autora traça na personagem, logo em seguida ela puxa o seu tapete, sem a mínima consideração.
A morte de Macabéa também é bastante musical, e é o riso final de Clarice sobre essa criatura inadaptável que tende para o infinito.
Macabéa morre como um acorde final de uma sinfonia, jogada ao chão por um Mercedes, um acorde prolongado, mas seguro e seco, ao tentar se levantar, já morrendo, como harmonias que ainda não se resolveram mas que estão próximas de sua resolução.
E assim como a palavra muda a música, e para alguns compositores é desnecessária, Macabéa morre exatamente quando sua vida é mudada pela palavra, no caso, a profecia da cartomante. Ela, que passou todo o romance como um ente sem explicação, fluindo, quando a palavra, o sentido do mundo, entra em sua vida, a despedaça.
Alguns momentos depois, surge um mendigo esquálido tocando violino em frente a um beco escuro, a marcha fúnebre tocada por uma figura que remete a Paganini e também à morte.
Se, como nos diz Clarice, os fatos são sonoros, a morte, o último fato da vida, só é ouvida no infinito absoluto do Vazio, o lugar metafísico de Macabéa.
Você é sublime, Clarice.