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Clarice Lispector: busca

Uma série de três olhares sobre a vida e a obra de Clarice Lispector, por três escritores diferentes. No segundo, o escritor e professor colombiano Rafael Gutiérrez Giraldo, medita sobre o fluxo de consciência na obra da mais original romancista brasileira.

*Rafael Gutiérrez Giraldo

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O primeiro artigo dessa série, Liberdade, você encontra aqui.

 

“Há muitas coisas para dizer que não sei como dizer. Faltam palavras”, escreve a narradora de Água Viva (1973), da brasileira Clarice Lispector. Desde Perto do Coração Selvagem, seu primeiro romance, publicado em 1943, a obra de Lispector entra em uma busca agonizante para alcançar algo que está além da linguagem, algo que a literatura espreita, mas talvez nunca consiga apreender. Seus narradores estão sempre viajando pelos limites da escrita. Parece que as palavras não conseguem alcançar aquela matéria viscosa, ambígua, fugaz que se situa além da linguagem e do pensamento, numa zona de sombras. Tentam alcançar algo que lhes escapa no último momento e que nem sabem nomear: “a coisa verdadeira”, “a essência”, “o instante-agora”.

O enredo da maior parte dos romances de Lispector perde relevância diante dessa busca existencial e metafísica. “Romance psicológico”, “romance íntimo”, “romance introspectivo”, “monólogo interno”, foram expressões utilizadas pelos críticos de sua época para tentar caracterizar sua obra. Um de seus primeiros críticos tentou compará-la com Joyce, Proust e Virginia Woolf, algo que a escritora não gostou muito, que em carta à irmã Tânia diz: “Escrevi para ele [o crítico Álvaro Lins] contando-lhe que eu não conhecia Joyce nem Virginia Woolf nem Proust quando fiz o livro, porque o maldito homem só faltou me chamar de ‘representante comercial deles’.” Na década de 1940, a crítica tentou compreender a obra de Lispector a partir de referências europeias porque ela parecia – e talvez ainda pareça – um elemento estranho na tradição literária brasileira. Longe de serem uma reivindicação representativa de uma determinada realidade local, como no caso de vários de seus contemporâneos, os romances de Lispector estão muito fragilmente ligados a referências externas. Pelo contrário, são construídas de forma quase obsessiva, girando em torno da mesma questão: “…estou procurando, estou procurando. Procuro compreender” ( A Paixão Segundo GH, 1964).

Há mais pensamento e reflexão em seus romances do que histórias e ações humanas. Em Água Viva ele escreve: “este meu texto é todo atravessado de ponta a ponta por um frágil fio comum – Qual? A da imersão na questão da palavra?” É a própria linguagem, ou o que estaria além da linguagem, a protagonista de seus livros. Neste sentido, é uma literatura que não se adapta facilmente às normas de gênero. A própria Lispector afirmou não estar mais sujeita aos gêneros literários. Alguns de seus livros possuem subtítulos que refletem a condição ambígua de sua literatura: “ficção” é o subtítulo de Agua viva, “pulsações” é o de Um sopro de vida (1978). No início da recepção crítica de sua obra, dizia-se que seus livros não eram verdadeiros romances e que se tratava de literatura hermética. Características que mais tarde seriam elogiadas pelos setores menos conservadores da crítica literária brasileira. Apesar do aparente caráter hermético de sua escrita, Lispector foi geralmente bem recebido pelo público leitor e as edições de seus livros muitas vezes esgotaram-se.

Mesmo as crônicas que escreveu como forma de sobrevivência mantêm esse caráter reflexivo e intimista de sua obra. Apesar do desejo de pureza em sua escrita – Lispector disse que ela não escrevia por dinheiro, mas por impulso–, após a separação do marido, o diplomata Maury Gurgel Valente, que conheceu na Faculdade de Direito, Lispector precisou recorrer a vários empregos para se sustentar financeiramente. Ela escreveu colunas para revistas femininas; crônicas em diversos jornais; alguns livros por encomenda; ela foi tradutora de autores como Edgar Allan Poe, mas também de livros best-sellers como The Natural Recipe to Be Pretty, de Mary Ann Crenshaw; e até trabalhou como ghost-writer para Ilka Soares, conhecida atriz e modelo brasileira nas décadas de 1950 e 1960.

A natureza fragmentária de muitos dos seus livros tem a ver com o seu método de trabalho particular, que a autora chama de método de “anotação imediata”. Notas soltas escritas em vários momentos do dia sobre o mesmo assunto que aos poucos vão moldando a matéria de cada um de seus livros. Sobre esse procedimento específico, uma de suas biógrafas, Nádia Battella Gotlib, registra que Lispector, diante da profusão de anotações soltas espalhadas por sua casa, deu ordens estritas ao seu empregado para “deixar qualquer papel escrito onde estiver”. A escrita de Lispector é fragmentária e gera a sensação de contínua incompletude. Como se cada novo livro viesse tentar terminar algo que ficou incompleto, sem solução. É por isso que temos a sensação, quando abrimos qualquer um de seus livros, de que estamos sempre lendo o mesmo.

Quanto às diferenças entre o ensaio e o romance, César Aira argumentou que o lugar ocupado pelo tema era central. No ensaio o tema viria antes de começar a escrever e seria esse o lugar que garantiria o caráter literário do resultado. No caso do romance, o tema só seria revelado no final, como algo independente das intenções do autor. Acho que Lispector concordaria com o escritor argentino. Para ela, cada livro novo é uma busca, uma viagem a um lugar que não conhece e que também representa uma espécie de risco: “Cada livro novo é uma viagem. Só que é uma viagem vendada por mares nunca antes revelados […] Quando sinto uma inspiração morro de medo porque sei que mais uma vez vou viajar por um mundo que me repele.”

Apesar de hoje ser uma autora canonizada na literatura e na cultura brasileira, elevada até à categoria de ícone pop – uma estátua em sua homenagem foi colocada no bairro do Leme, onde morou no fim da vida, na zona norte da praia de Copacabana – seu trabalho guarda um ar de estranheza, uma energia que ultrapassa os impulsos para discipliná-lo. Paradoxalmente, suas frases, retiradas do contexto de seus livros, tornaram-se presas fáceis de mensagens motivacionais e de autoajuda que circulam em camisetas, bolsas, canecas e em meio ao confuso mundo virtual que habitamos. Como escreveu Roberto Calasso em relação a Fernando Pessoa, o nome de Clarice Lispector também “passa por aquele processo delicado e lamentável, ao final do qual – como já aconteceu com Kafka e Borges – se tornará uma noção utilizada sobretudo por aqueles que nunca leram seus livros”.

Borges também disse que “a glória é um mal-entendido e talvez o pior”. Desde o início como escritora, Lispector deixou claro o risco que enfrentava. Havia na sua forma de abordar a prática literária um misto de desejo e ao mesmo tempo repulsa pelo que consideramos sucesso ou reconhecimento literário. Os mil exemplares da primeira edição de Perto do coração selvagem, que surgiu no final de 1943, esgotaram-se rapidamente, causando certo espanto e decepção a Lispector, que já imaginava uma vida “sombria e sombria” como escritora. Em entrevista ao escritor e jornalista Paulo Mendes Campos, Lispector refere-se a esse episódio: “a circunstância de falarem do meu livro roubou-me o prazer daquele sofrimento profissional […] tive a impressão de ter enganado os leitores que gostaram de Perto do coração selvagem. “Sempre me sinto deprimida depois de uma longa conversa e sinto exatamente como se tivesse falado demais.”

Essa personalidade sofrida e angustiada faz parte da mitologia construída em torno de Clarice Lispector. Sua solidão, seu isolamento, seu silêncio. “O que eu faço? Não suporto viver. A vida é tão curta e não suporto viver”, escreveu ela em uma de suas crônicas. Vários de seus amigos próximos confirmam esses traços depressivos e introspectivos de sua personalidade. No final da vida teve que ser internada diversas vezes devido ao uso excessivo de analgésicos.

Algumas das suas fotografias e registos das suas entrevistas parecem transmitir esse aspecto melancólico, bem como uma certa dureza no rosto e no olhar que deixam no observador um profundo sentimento de tristeza. Em algumas de suas fotografias Lispector aparece sorrindo. Sua obra, claro, já revela a permanente questão sobre o sentido da existência. Talvez não seja coincidência que o nome de batismo da escritora fosse Haia: Haia Lispector Pinkusovna, nascida em 10 de dezembro de 1920 em Chechelnik, região de Vinnytsia, na Ucrânia, filha de judeus russos que fugiam dos pogroms em seu país. Haia em hebraico significa vida, como se em seu próprio nome já carregasse a marca do seu destino: questionar a vida. Parece que há sempre uma desconexão entre a escritora e a vida que a rodeia: “Estou feliz na hora errada. Infeliz quando todos dançam”, escreve em Um sopro de vida .

A solidão, a incompreensão e a quase impossibilidade de uma verdadeira comunicação entre os seres são aspectos que retornam repetidas vezes em seus livros. Essa incompreensão é quebrada apenas momentaneamente, em pequenos momentos de revelação mística, como na visão da narradora de A Paixão Segundo GH de uma barata morta no armário do quarto de sua empregada; no encontro de Macabéa com uma cartomante que lê seu destino nas cartas de A Hora da Estrela (1977); ou na revelação que pode surgir ao caminhar e observar silenciosamente as plantas do Jardim Botânico.

Assim, a natureza e também a materialidade dos objetos que nos rodeiam são aspectos centrais na obra de Lispector, não como cenário e referência para suas histórias, mas como forças que irrompem na narrativa e que nos permitem ultrapassar os limites da linguagem para momentos e da razão. Objetos e animais que geram encontros inusitados e momentos de epifania, frequentes em seus contos e romances. A consciência humana da infelicidade encontra assim o seu outro lado na plenitude material dos objetos e no conhecimento intuitivo que podemos perceber no nosso contato com plantas e animais.

A própria Lispector sempre esteve cercada de animais: pássaros, cachorros, gatos. Seu fiel cão Ulisses até aparece transfigurado em personagem em um de seus textos. Lispector escreveu certa vez: “Só quem teme a sua própria animalidade não gosta de animais”. E ainda: “Não humanizo os animais porque é ofensivo – a sua natureza deve ser respeitada – quem me animaliza sou eu”.

Judia russa por ascendência, ucraniana por acaso, brasileira por adoção, Lispector escolhe o português como língua e é esse português que ela irá torcer, furar, transformar na sua busca artística. Hoje, quando a ficção parece ter abandonado esses caminhos de exploração incisiva da linguagem, a obra de Lispector ainda está aí para nos mostrar quais são os limites da linguagem e até onde a literatura é capaz de ir.

 

Rio de Janeiro, 23 de outubro de 2020 .