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Clarice Lispector: liberdade

Uma série de três olhares sobre a vida e a obra de Clarice Lispector, por três escritores diferentes. No primeiro, a escritora e professora venezuelana Gisela Kozak Rovero, medita sobre a importância da linguagem na obra da maior escritora brasileira.

*Gisela Kozak Rovero

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Quantos escritores na casa dos vinte anos gostariam de ter o luxo de escrever no seu primeiro romance uma questão tão radical sobre a liberdade como a colocada por Joana, protagonista de Cerca del corazón Savage (Perto do coração selvagem, 1944):

“O que seria isso se não sentimento de força? Continha, a ponto de explodir em violência, aquela vontade de usá-lo de olhos fechados, inteiro, com a segurança impensada de uma fera? Não foi só no mal que alguém pôde respirar sem medo, aceitando o ar e os pulmões? Nem mesmo o prazer me daria tanto prazer quanto o mal, pensei surpresa. Ela se sentia dentro de si um animal perfeito, cheio de inconsistências, egoísmo e vitalidade.”

Na década de 1940, época de uma guerra cujas consequências moldaram o planeta, Clarice Lispector (1920-1977) questionou-se, com espírito nietzschiano, sobre os limites da moralidade, aqueles limites que no caso da mulher implicam a sua vontade de corpo e alma. . “Onde estão as únicas mulheres?” Joana pondera quando a sua própria entidade humana se impõe como obstáculo aos seus familiares e ao seu casamento. A mesma Joana que olha o mundo com pele e mente alertas não é capaz de se integrar sem sofrer mutilação. Como bem aponta Linda Zerilli em Feminism and the Abyss of Freedom (2005), a liberdade feminina tem sempre que ser justificada sob o manto da sua utilidade pública, do bem que a sua educação, o seu contributo laboral e a sua autonomia representam para a sociedade. Joana, por outro lado, apenas se questiona sobre a sua condição humana em liberdade. Este romance de Lispector se passa no coração do século XX, não há dúvidas na hora de lê-lo.

Em Todos sus cuentos** (Siruela, 2018), encontramos repetidamente personagens com comportamentos imprevisíveis que colocam em causa a placidez da repetição inerente à vida normal e monótona, tema da literatura do século passado perseguido pelo mito da autenticidade existencial. Não em vão, Lispector é também filha do Iluminismo, das revoluções, do romantismo, da democracia e da concepção de arte e de vida como ruptura com as convenções. Em “A fuga” ( Alguns contos , 1952), uma mulher foge e retorna sem que o marido descubra sua tentativa fútil de libertação e sua derrota íntima, no estilo de “Amor” ( Laços de família, 1962). Aqui a protagonista sente-se maravilhada e emocionada ao se deparar num recanto da cidade com o pulsar da vida natural indiferente à atividade humana, uma iluminação que ocorre durante uma simples ida às compras que termina com um regresso doméstico a casa, sem consequências. “O Ovo e a Galinha” ( A Legião Estrangeira, 1964), irônica e brilhante história do ovo e do destino das galinhas como criadoras, condensa as questões sobre o corpo feminino como instrumento dos outros: quão estúpida é a galinha que o pensa é gratuito e não é meio da natureza e da alimentação de outras pessoas. No romance A paixão segundo GH (1964), um medo tão mesquinho quanto o desgosto que tantas mulheres têm pelas baratas é explorado a ponto de se perder e a barata ser a própria ligação com a matéria do universo. Por trás da vida de uma escultora rica e elegante, o abismo se abre sem sair de seu apartamento. Clarice Lispector é uma das grandes escritoras do século XX porque condensa questões-chaves da estética e da filosofia: sobre a liberdade, a arte e o lugar da mulher artista, da mulher escritora que desafia não os modos de vida convencionais, mas o que é esperado do pensamento e da escrita das mulheres. A protagonista da obra de Lispector não é a mulher, é a vontade estética.

Conforme retratado por seu biógrafo Benjamin Moser em Why This World. Uma biografia de Clarice Lispector (2009) , Lispector, mais do que se tornar uma heroína rebelde – ao estilo de Susan Sontag, também interpretada por Moser em Sontag. Vida e Obra (2019)–, foi uma escritora que se dedicava à palavra como ofício, que surpreendeu os grandes escritores brasileiros com seu talento, que eles reconheceram. Da mesma forma, cumpriu o papel de esposa e mãe. Lispector encarna os paradoxos da escritora que soube viver com conforto, como lhe garantiu o marido diplomata, mas preferiu separar-se dele porque amava o Brasil, refúgio do pai e da mãe marginalizados que fugiram da Ucrânia. Com problemas financeiros e, por vezes, com dificuldades para publicar, mas exigidas pela sua vocação, Lispector não hesitou em escrever sobre maquiagem e moda, cumprindo as exigências incontornáveis ​​da sua esplêndida beleza na época em que viveu, assunto difícil de compreender a partir de uma única perspectiva para o olhar atual. Eles a traduziram e a publicaram, mas a cobrança de direitos autorais nem sempre funcionou bem. Aquela elegante senhora foi na verdade um ápice da língua portuguesa, mas quem iria proclamar isso em toda a sua dimensão no tempo de Jorge Amado e de João Guimarães Rosa? Quando o reconhecimento fora do Brasil entrou em sua vida, ela aceitou com mais alegria do que surpresa.

O legado literário de Clarice Lispector transcende suas personagens encerradas em um mundo convencional com o qual mal conseguem romper e as transcende, repito, por sua expressa vontade estética, ao ousar expressar uma visão única de mundo a partir do trabalho com a linguagem. O feminismo de Clarice foi sua liberdade como escritora e seu legado é a palavra sem rédea, que ultrapassa a visão convencional para nos lembrar de nossa conexão essencial com o mundo, não apenas como sociedade e história, mas como experiência do corpo, da consciência e dos sentidos . Ela existiu para a literatura com uma coragem que gostaríamos que tantas escritoras fossem apanhadas nos desafios da escrita hoje, quando somos mais livres, porém tivemos um período mais tímido que o de Lispector em termos de aspirações artísticas e literárias. Não há texto da brasileira em que sua genialidade não brilhe, e se ela foi chamada de “selvagem” pela poetisa americana Elizabeth Bishop, com certa condescendência, é porque a qualidade de seu talento parecia uma espécie de naturalidade e dom imperturbável, que avançou sabiamente do primeiro ao último texto.

 

**Título de uma edição mexicana (N.E)