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Comer é para o corpo e para o espírito

Colaborador de Navegos publica mais um comentário sobre a série que Amazon Prime extraiu de História da alimentação no Brasil, obra clássica de Luís da Câmara Cascudo.

*Francisco Alexandre Soares Alves

A vida autêntica está na mesa. Não está no trabalho, nem no amor. Está no abrir e fechar da boca, não há prazer mais divino do que um banquete. Cuido afirmar que a saciedade do estômago é o início de qualquer boa aventurança.

A industrialização e o apego excessivo ao trabalho retiraram do cotidiano o significado maior de se estar à mesa. Roubaram o tempo. Em qualquer classe social, o café da manhã pode ser numa padaria, o almoço em um McDonald’s, ingerindo um alimento sem personalidade, comida ruim feita em série, cujo único significado para o corpo é o acúmulo de doenças. O capitalismo envenenou o espírito do ato de comer, não se está mais à mesa para uma comunhão fraterna, para uma ágape. Mas apenas garantir uma sobrevivência, mais um dia de trabalho. Que significado tem a vida se não se pode viver a delícia do próprio corpo?

O café da manhã, o almoço, o jantar, estes momentos de comunhão familiar são sobretudo portugueses, em sua essência. Da corte e do povo português. Na Europa, nenhum outro povo possuía os hábitos alimentares dos lusitanos. Não era apenas comer, mas sim, por que comer.

Na corte portuguesa se comia de tudo. Os Bragança, sempre muito gordos, possuíam um apetite esmerado. Dom Pedro II amava canja. Por isso papagaios eram criados e sempre estavam à disposição nas panelas da corte. Mas e a galinha? A canja é um caldo de arroz e carne de ave: ia-se galinha, mas também papagaios, araras, gansos… A corte portuguesa, em certo aspecto, era uma das mais simples da Europa. Apreciavam bacalhau, mas não dispensavam e sabiam apreciar igualmente, sardinha.

Esse espírito de comer tal qual uma comunhão, os portugueses trouxeram ao Brasil. Isso gerou um matrimônio com os hábitos alimentares africanos e com a taba indígena, onde, à maneira da corte portuguesa, se comia festivamente em uma mesa enorme.

O brasileiro, esse rebento do trisal colonial, soube guardar essa ágape, até certo ponto. Aquela alegria de um churrasco, por exemplo. O que lamentamos, é que dantes esse espírito era diário. Hoje, está reservado para alguns momentos, alguns domingos. Domingos em que nossa memória ancestral se liga e revive o sentido maior de ser humano, sua raiz, a comunhão.

Esse é o significado do alimento, a comunhão. Cristo sempre come e bebe acompanhado. De qualquer pessoa, do pecador ao religioso, sempre Cristo está à mesa com convivas. Seu prato e sua taça, são porque há o prato e a taça para o outro, e assim se desvela o sentido maior do viver: a comida e a partilha, com muita alegria.