• search
  • Entrar — Criar Conta

Como surgem os dísticos

Fundador de Navegos explica aos seus leitores o surgimento do dístico em Latim que compõe o seu ex-Libris, uma pratica atualmente completamente em desuso. Mas, antigamente, quase todo escritor ou colecionador de obras raras tinha o seu Ex-libris, um dístico que o definia e o fazia reconhecer-se nessa comunidade de primeira classe.

*Franklin Jorge

É por demais sabido que escrever é uma espécie de luxo que não está ao alcance de todos. Mesmo quem dispõe de recursos monetários, por mais que deseje fazer parte dessa comunidade, nem sempre o consegue, pois o talento é matéria rara e não obsequia todo mundo, por mais vaidoso e abonado que seja. Não é bastante querer ser escritor ou poeta para sê-lo, mesmo quando se recorre a uma pena alugada, que logo se faz notar justamente por ser de aluguel e não dispor de alma, digamos assim, mas somente de técnica.. Há, por trás disto, mais alguma coisa que para a maioria parece inexplicável. Muitos escrevem – é verdade-, porém são raros os escritores,os autênticos escritores, que parecem ser mais raros do que os cisnes negros. Sobretudo os escritores capazes de colocar acima dos seus próprios os interesses da arte, que é exigente e casta.

Para manter-me afinado com meus interesses mais íntimos, resolvi, há anos, ter um Ex-Libris, cuja elaboração não foi nada gratuita nem se me deu de mão beijada, antes foi uma conquista que me exigiu paciência, engenho e arte, para – após anos de labuta – chegar a uma solução razoável. Ou seja, não foi nada absolutamente gratuito, antes resultou de uma busca que durou pelo menos uns 30 anos de paciência e determinação. Pois a arte, como sabemos, é exigente e se compõe de uma matéria rara – o Tempo.

Deu-ma o povo e as circunstâncias, no curso dos anos, graças à atenção com que ouvi e voltei a ouvir de novo o que me diziam em momentos tão inesperados, em alguns dos quais eu não dispunha de papel nem de lápis, só da memória mesmas, que os gregos clássicos reverenciavam como a Rainha das Artes. Agora, que esse dístico existe e está transposto para o Latim clássico, posso afirmar que me posso guiar por um aforisma que me define e define, de resto, minha própria criação estética:

Escriptor qui vitam dat mortuis at que vocem cui non habet.

Pode até parecer pretensiosa, essa escolha, mas, que fazer, se traduz o que sou ou pretendo ser como escritor ou diletante que se compraz em escrever o que me parece razoável? Serei eu mesmo aquele escritor que dá vida aos mortos e voz a quem não tem voz? De fato, creio que o meu Ex-libris sintetiza o meu pensar e a maneira como vejo as coisas, não com o todo mundo as vê, mas como alguém que, observando, pensando e escrevendo sente-se capaz de dar vida aos mortos e voz a quem não tem voz, síntese que desde então me persegue e dá consistência ao que sou ou penso que sou – como homem e como artista da palavra.

Curioso é que esse dístico não nasceu ao mesmo tempo; foi-se formando com o passar do tempo, aos poicos e lentamente, como se formam os diamantes, aparentemente ao acaso. Até porque, para alguns, o acaso é Deus. Assim, em certa ocasião, conversando com um desconhecido que se interessara por meus escritos mas desconhecia quem eu era de fato, afirmou que, ao escrever-me em carta endereçada a um jornal onde eu labutava, que ao escrever eu daria vida aos mortos, ao falar através deles e de suas obras, ou seja, trazendo-os de novo à vida presente através de minhas próprias palavras que não lhes sonegava o talento e dava-lhes relevo ao mérito, um dos primeiros deveres de quem se dispõe a escrever sem esperar reconhecimento nem paga.

A outra parte que compõe o dístico, mais antiga, ouvia-a também de um desconhecido, em uma sala de bate-papo quando ainda não existi a Internet, mas apenas o telefone. Ouvia-a de um jovem que se confessava admirador e leitor de um escritor desconhecido que escreveria, a seu ver, de maneira distinta e um tanto obscura e enigmática para a maioria de seus possíveis leitores, ou seja, fora da maneira comum e corriqueira com que se costumava escrever entre nós os escritores mais conhecidos e calejados pelos aplausos de uma enfieira de amigos e simpatizantes. Alguém que escrevia de um tal maneira desejada por muitos mas alcançada por pouco, segundo afirmou essa voz desconhecida, porque certamente eu teria ido muito além da leitura do que nos davam como Clássicos. Fiquei encantado com a agudeza de tal pensamento , mas não logrei extrair de meu interlocutor o seu nome de batismo. Soube apenas que teria 20 anos e gostava de ler p que não lhe parecia costumeiro e óbvio.

Nunca mais o encontrei em salas de bate-papo. Sei apenas que esse jovem rapaz seria do Seridó, mas o Seridó é por demais vasto para manter a ilusão de que poderia alguma vez reencontra-lo.