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Compreendendo vozes adormecidas

Uma divagação sobre certos aspectos de nostalgia a partir da música e da tecnologia moderna.

*Alexsandro Alves

[email protected]

 

 

Algumas vezes, leio, escuto ou vejo pessoas afirmando coisas assim: “ah, eu queria viver no século XIX”.

Eu acho estranho isso. “O passado é melhor!”.

Às vezes há o sentimento de nostalgia, claro. Mas apenas enfermidade pode explicar nostalgia por algo que não se viveu, alguma languidez doentia, coisas assim.

Eu tenho nostalgia pela década de 80.

Mas uma prova que viver no século XIX não era boa coisa encontramos nos sentimentos de alguns notáveis daquele século.

Baudelaire, em seu livro sobre a ópera Tannhäuser, de Wagner, diz-nos que por várias noites desejou ouvir aquela música, sozinho, em casa. Mas não havia música gravada ainda.

Claro que havia as reduções para piano de partituras orquestrais: Lizst fez várias dessas transcrições para piano de sinfonias inteiras e de óperas. Nietzsche, em sua autobiografia, agradece a seu amigo Peter Gast, por este ter produzido uma redução para piano do Prelúdio de Tristão e Isolda.

Eu ouvi uma dessas transcrições e o resultado não é satisfatório. Eu acho que eles também pensavam assim, porém era o que tinham.

Porque não é apenas a música. É como essa música soa e como ela se corporifica e se desfaz no tempo.

A orquestração de Tristão inicia, na tradição wagneriana, o que Wagner denominou de “arte da transição”. Em outras palavras, a mudança de estados de alma, de cena e de tempo, sem quebras aparentes.

É cinematográfico, mas Wagner não cria a palavra e o cinema só viria alguns anos mais tarde.

A arte da transição torna uma sequencia musical em tomadas cinematográficas.

Já nos primeiros compassos de Tristão podemos exemplificar de forma perfeita essa técnica com os quatro primeiros compassos da partitura, que equivalem aos 34 segundos iniciais do vídeo um, mais abaixo.

Quando ouvimos essa música apenas no piano, ela não evoca a nostalgia intensa e lânguida que sua orquestração, que seus timbres, que deslizam por vários instrumentos, sugerem.

A música parece petrificada.

Os dois primeiros compassos, mais a primeira parte do compasso terceiro, que é o acorde de Tristão, as notas Fá e Si, na parte inferior e Ré# e Sol#, na parte superior, é o motivo de Tristão; o acorde de Tristão e o restante do compasso, assim como o quarto compasso, é Isolda.

Tristão penetra e inunda Isolda através da mudança timbrística do violoncelo, dos primeiros dois compassos, para as madeiras, no terceiro. É como uma câmera que funde duas imagens em uma. A partir daí, Isolda se corporifica de maneira encantatória, a sensação é de um filtro mágico que foi aberto, a música evapora rumo ao silêncio que de fato segue essa primeira enunciação musical.

A música se dilui. Graças à orquestração wagneriana, temos a sensação de que nosso corpo flutua. Isso, a redução para piano não traduz satisfatoriamente. Porque falta-lhe a mudança de timbre, veja no segundo vídeo um pianista executando esse prelúdio.

Falta-lhe a arte da transição. Que transforma esses personagens, tanto musicalmente quanto dramaticamente, um no outro.

Fundindo-os em um único ser no final do drama.

Vídeo 1:

 

Vídeo 2: