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Confidências a Adélia

Escrevendo em série sobre poetas de seu afeto e admiração, Colaborador de Navegos constrói cartografia da poesia brasileira contemporânea.

Clauder Arcanjo*

Quando nasci um anjo esbelto,

desses que tocam trombeta, anunciou:

vai carregar bandeira.

Cargo muito pesado pra mulher,

esta espécie ainda envergonhada.

Com sua licença poética, Adélia, creio que o tal anjo era esbelto de corpo e gordo de poesia. Você anda, divina poetisa, a carregar (e despejar) poemas pelo mundo, e eu a me sentir envergonhado com meus fracos versos.

Leio e releio sua bagagem de subterfúgios e, cada vez mais, aprendo, com o coração disparado, que o belo habita a casa da simplicidade.

Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.

&&&

Não sou matrona, mãe dos Gracos, Cornélia,

sou é mulher do povo, mãe de filhos, Adélia.

Faço comida e como.

Aos domingos bato o osso no prato pra chamar o cachorro e atiro os restos.

— Quem a fez Adélia-povo foi Deus! — Confidencia-me Companheiro Acácio, a soletrar seus versos na Terra de Santa Cruz, Adélia Prado, junto a mim.

Lá fora, o azul culmina absoluto, como se essa tarde fosse uma de maio, transplantada por Deus e pela Poesia, para este março aflito.

Quando escrevi o meu primeiro livro, Licânia, tive vergonha dos contos ofertados ao meu povo. Minha gente sempre comeu comida forte e se acostumou a ouvir histórias com tutano, à beira do cômico e do trágico. No fim da noite, ao dormir na rede branca, segurava o xixi nas calças, com medo de encontrar as visagens à porta do banheiro.

Mãe, ô mãe, ô pai, meu pai. Onde estão escondidos?

É dentro de mim que eles estão.

&&&

Quero o que antes da vida

foi o profundo sono das espécies,

a graça de um estado.

Semente.

Muito mais que raízes.

Meu estado de espírito predileto é quando me ocupo da estação das chuvas: outono de úberes fartos, de milho verde, de cuias dadivosas de feijão verde e de atas (para o resto do mundo, pinhas), de homens e mulheres a rirem das besteiras proferidas pela meninada. Meu som preferido é o da chuva a batucar na cumeeira das casas, para, logo em seguida, rumorejar nos riachos cheios de grilos e de promessas de peixe frito.

Minhas raízes são (pro)fundas, o melhor de mim é semente colhida no meu longe, antes da vida.

Divido o dia em três partes:

a primeira pra olhar retratos,

a segunda pra olhar espelhos,

a última e maior delas, pra chorar.

&&&

Uma ocasião,

meu pai pintou a casa toda

de alaranjado brilhante.

Por muito tempo moramos numa casa,

como ele mesmo dizia,

constantemente amanhecendo.

Eu quero o meu pai de volta, Senhor! Pelo menos por um instante. Pode ser uma esmola de tempo, ao vivo ou em sonho. Que ele repita para o mundo aquilo que bem nos ensinou: a primeira missão de um homem é ter a sua própria casa, recanto sagrado onde possa cuidar e zelar os seus.

Por muito tempo, constantemente, ando a repetir, ao mundo inteiro, tal lição. Com isto, pinto o seu rosto, na minha face silente, com as lágrimas da dorida saudade.

Ô pai, pinta o céu de azul, como azul sempre foram os seus conselhos mansos e sábios!

Saudade, pai. Como esta saudade dói, meu bom-velho-amigo!

Mas eu vim pra cidade fazer versos tão tristes

que dão gosto, meu Jesus misericórdia.

Por prazer da tristeza eu vivo alegre.

&&&

Louvado sejas Deus meu Senhor,

porque o meu coração está cortado a lâmina,

mas sorrio no espelho ao que,

à revelia de tudo, se promete.

Quem nasce no sertão cearense, Adélia, aprende a ter fé na vida farta. O sertanejo é um “espritado”, já nasce, pé de menino, batizado e ferrado pelo sonho do verde, mesmo se parido do bucho da seca mais inclemente.

Penso eu que os despojos de todo licaniense, bendito filho da província, são uma cabeça grande, e chata, pendida para o nascente; sempre a rezar, com sofrimento e alegria, pelo surgimento do aboio das nuvens, por entre serenos e relâmpagos, em noite de luar baço, sertão afora. Por isso, creio, brotei-me mandacaru-poeta.

Porque, mercê de Deus, o poder que eu tenho

é de fazer poesia, quando ela insiste feito

água no fundo da mina, levantando morrinho de areia.

&&&

Amor feinho é bom porque não fica velho.

Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:

eu sou homem você é mulher.

E eu, sempre apaixonado por minha antiga (e cada vez mais nova) namorada, cuido do essencial: manter os olhos a brilharem quando me aproximo e ouço sua voz melíflua a me saudar: “Oi, meu Biscuí!…”

Nessas horas, o mundo tumultuado se aquieta, o céu se recobre de estrelas e eu, feliz apesar de cansado, concluo: “Tal mulher me basta!”.

O mundo cai de cansaço.

A salvação, mais que viável,

é certa para santos e réprobos.

E, na alvorada seguinte, recebo novamente a cândida bênção: “Um beijo, meu neguinho! Mais um, Biscuí!”.

Aprendo. Te aprendo, homem. O que a memória ama

fica eterno. Te amo com a memória, imperecível.

&&&

Só melhoro quando chove.

Adélia, quando o céu daqui se arruma, e as nuvens engravidam-se de chuvas, há um riso que desponta no miolo da minha tristeza. Tal riso, milagroso e aura dadivosa, espalha-se por entre os meus músculos e nervos, a ganhar, em seguida, a praia das minhas mãos. Com elas, tal qual um Merlin sertanejo, saio pelas ruas a obrar o milagre de dar apertos que reverdecem os homens.

O maior milagre do sertão é obra da chuva. E tem a duração do dia.

A boa-noite floriu suas flores grandes,

parecendo saia branca.

Se eu tocasse um piano elas dançavam.

Fica tão bom o mundo assim com elas

Sempre as flores a mudarem o estado de nosso espírito! Basta uma delas, Senhora Prado, para que o amanhecer se cubra com o manto da divindade.

Toda vez em que me deparo com um florescer, refloresço melhor; em especial, à boca da noite.

A salvação opera nos abismos.

O poeta é um ente filho de uma grande flor, que foi engravidada por uma abelha amante das palavras-canções. Oráculos de maio.

&&&

A noite dura seu tempo, mas a barra do dia barra,

espanca a soberba das trevas.

Acorde, Adélia! A barra do dia quer ressurgir (ouça as seis baladas do entardecer!), contudo os homens precisam da filha de Divinópolis para romper as amarras da soberba que seguram a escuridão das trevas. Venha com uma tulha de poemas e faça com que o fogo das sarças ardentes rompa, sem esforço e com a faca no peito, tantos férreos elos. Serão cacos para um vitral.

A poesia é pura compaixão.

Obs.: os trechos em itálico foram extraídos do livro: Reunião de poesia, de Adélia Prado. – 1ª edição – Rio de Janeiro: BestBolso, 2015.

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.