*Clauder Arcanjo
Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.
Tenho todos os motivos menos um de ser triste.
Basta-me um verso teu, Bandeira, daqueles mais discretos ou em forma de brinquedo, e sinto uma alegria de saudade. Um bocado de carinho, pois assim sentimos, ao contigo conversarmos, que a nossa dor, também, foi tal qual a do nosso Poeta.
Eu já li maus poetas; hoje, depois de Bandeira, eles que não me façam figa. Tenho um poeta na minha lista.
Manuel, Bandeira do Brasil. Manuel, Poeta do Brasil!
Abençoado seja o camelô dos brinquedos de tostão:
O que vende balõezinhos de cor
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A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
— Bandeira, há coisas que agradecemos a Deus todos os dias. Uma delas: por não ter te permitido ser engenheiro-arquiteto (Glória a Deus!), louvaste-nos com a oração da Poesia. A vida inteira te fez poesia, com aprumo, esquadro, apuro e galhardia! — Agradecem a Deus os meus companheiros de estima: Carlos Meireles e Companheiro Acácio, ambos teus fãs de carteirinha.
Eu tento imitar uma “simples” estrofe bandeiriana; e, ao canto, esses dois a se estourarem em gaitadas loucas, a zombarem da minha patética desritmia.
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
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Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem-comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor
Vou deixar, Poeta, o cotidiano limpar a minha pena. Vê, aquele maluquinho da esquina! Está a querer abraçar o sol; vou colher suas má-criações e voltar, menino, para o parque de criança. E aquela dama, Manuel, com enfaro e pouco riso? Deixarei que ela se vá, dela não tirarei o meu ritmo. E dos moleques que me evocam Licânia?! Quem sabe, após tal evocação, montarei em burro brabo, tomarei banho de rio e me nomearei Rei da Várzea, várzea das garças que me viu passar.
E se me der vontade, uma vontade de não ter jeito, de escrever um verso, vou chamar pelo Pai do Verso. E Bandeira há de me salvar. Dormirei, profundamente, nos braços de mãe Maria, melhor colo não há.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
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Cidade pomar
(Obrigou a polícia a classificar um tipo novo de delinquente:
O apedrejador de mangueiras)
Se tu tivesses visitado Licânia, Bandeira, em vez de Quixeramobim, verias, como em Belém, que em nossa província havia os delinquentes apedrejadores de mangueira.
O problema é que a polícia e os homens bons da minha terra sempre nos perdoavam o ato. Desde que os convidássemos para a maior manga com eles chupar.
Em tais tardes, Bandeira, o pároco e as beatas abandonavam a missa e vinham rezar, embaixo das mangueiras, numa eucaristia dadivosa, doce e remissora.
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Rua da União…
Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade…
Rua de Trás, Rua do Caneco Amassado… os mais belos nomes da minha infância. Nelas, corríamos sem medo de burro brabo, vigilantes apenas com relação à presença do Pelô. Este, desabrigado de rua, sempre a nos querer confessar os seus fantasmas bisonhos. Se o ouvíssemos (Perdoa-nos, Mãe de Deus!), daria em nós uma vontade danada de chorarmos, e os planos traquinas a todos abortaríamos.
Cresci e sonho com as reinações que Pelô poderia ter nos contado. Hoje, Manuel, tento criá-las com a minha fabulação; no entanto, como sou mau poeta, inventá-las bem ainda não pude.
Valei-me, Sant’Anna! Valei-me, Nossa Senhora dos Escritores Aflitos!
— E teu mundo é Licânia?, tu me espetas.
Licânia é o mundo de todos os meus. De Zequinha, de Maria, de Gerardo, de Miguel, de Vovô Sebastião, de Mãezinha, da boa Lídia, do Bodô, do vaqueiro Pedro Chagas, de Tia Teresa… Enfim, tanto meu, como o teu: tua Recife boa, de homens e mulheres na calçada a falarem, bem ou mal, da vida alheia.
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
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A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
Confesso, perante Deus e todos os homens, que os meus poemas primeiros nasceram tortos, impregnados da lusíada sintaxe, imitações dos vates requintados de além-mar.
Hoje, enquanto os lia e relia, à beira do rio Acaraú, uma garça voou sobre mim e fez cocô na minha “poética língua de mestre”.
Nossa Senhora me dê paciência
Para estes mares para esta vida!
Me dê paciência pra que eu não caia
Pra que eu não pare nesta existência
Tão mal cumprida tão mais comprida
Do que a restinga de Marambaia!…
Haverei de ter a paciência dos bebuns de Sant’Anna. Eles esperavam julho chegar, com suas novenas e festas na praça, sorvendo uma pinga de janeiro a junho, de agosto a dezembro. Se algum deles se machucava quando caía na rua?
Quando se machucava, dizia: Ai Zizus!
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Me dá alegria!
Me dá a força de acreditar de novo
No
Pelo sinal
Da Santa
Cruz!
Peço, por todos os anjos e santos, e perante Jesus e Nossa Senhora, que hei de rezar um dia como bem nos ensinou nossa mãe, Maria Djanira: “Pelo Sinal da Cruz, livrai-nos Deus nosso Senhor…”.
Não posso dizer assim à toa.
Andorinha lá fora está dizendo:
— “Passei o dia à toa, à toa!”
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa…
As andorinhas de Licânia me viam passar e nunca gostavam de me ver silente, com ar de passarinheiro de outro mundo.
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
O bonde de Licânia era fruto da minha criação, construído pelos engenhos das leituras que me vinham de fora. Os livros moravam na biblioteca, quase abandonada, do meu ginásio. Quando eu os visitava, as personagens se festejavam comigo e se levantavam de sua pasmaceira de papel, no qual antes dormiam, profundamente.
— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.
Meus amigos estranhavam que eu trocasse a rua pelos romances. Como poderia explicar para eles que havia tantos espantos no mundo que me vinha de longe?
Não posso atinar no que eu fazia: se meditava, se morria de espanto ou se vinha de muito longe.
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Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor
Imagino Irene entrando no céu:
— Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
— Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.
E tu, meu pai, entraste sem pedir licença?
Vou logo dizendo a São Pedro bonachão: se o nosso Zequinha não estiver junto de Cristo, eu não quero saber mais do Céu!
Irene, boa, preta e sempre de bom humor, faz um docinho de leite para nosso velho! Ele é tímido, ele gosta daquele caroçudo, mexido com o talo do mamoeiro para bem talhar. Serve nosso Zequinha em um pires grande; papai é muito bom sujeito.
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Obs.: os trechos em itálico foram extraídos do livro Libertinagem, de Manuel Bandeira. — 1ª edição digital — São Paulo: Global Editora, 2014.
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.