*Clauder Arcanjo
Tudo me fala e entendo: escuto as rosas
e os girassóis destes jardins, que um dia
foram terras e areias dolorosas.
Entendo pouco, Cecília, mas melhor compreendo quando me aproximo do teu cântico, inconfidente patrimônio das tragédias das minas de outrora.
Hoje, quando me lembro das areias manchadas de dor e desgraça da minha província, bem sei que nos falta um vate competente que fale, entenda (e abale) as rosas de sangue, girassóis doridos, colhidos pela ambição da minha gente.
Que a sede de ouro é sem cura,
e, por ela subjugados,
os homens matam-se e morrem,
ficam mortos, mas não fartos.
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Há multidões para os vivos:
porém quem morre vai só.
— Quem vai comigo enterrar este homem?
A voz rouca e farta ecoava pelas calçadas vazias, as mulheres trancavam as portas da frente, enfiavam os meninos no rabo das suas saias e rezavam para que os esposos não se apiedassem daquele que foi varado pela usura do poder.
E a noite alcançava a rede a seguir para o cemitério. Dentro dela, um morto matado. Fora dela, exaustos, dois jurados pelo ofendido.
Onde a fonte do ouro corre,
apodrece a flor da Lei!
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O reino de Deus, tão longe
dos humanos desvarios.
As beatas rezavam, as carpideiras choravam compassadamente nos velórios, os dias corriam, contudo as tragédias (res)surgiam pelo vale de Licânia.
Todo domingo, na igreja a Santa Missa; e, logo na alvorada seguinte, a certeza de que o reino de Deus não lhes estaria próximo.
E a vida, em severos lances,
empobrece a quem trabalha
e enriquece os arrogantes
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Em redor das grandes luzes,
há sempre sombras perversas.
Homens de valia poucos havia. Senhores de simples ações e olhos luzeiros, a iluminarem de esperança a provinciana terra com sua palavra magra, todavia vera e sincera.
Entre eles, disfarçados como pragas malsãs, miserentos embusteiros, malditos a se cumularem de dinheiro e a se empobrecerem de dignidade.
Em Licânia, alguns malsinados alcançavam a “fama” de doutores ou de rotundos coronéis. Para o povo nenhum engano: bosta pura, muita pose e pouco mel.
Neste levante das almas,
trabalham sábios e tolos.
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Liberdade — essa palavra
que o sono humano alimenta:
que não há ninguém que explique,
e ninguém que não entenda!
Os ribeirinhos bebiam a pobreza suja nas vazantes do rio. Os meeiros recebiam a pior parte das plantações plantadas e colhidas. Os vaqueiros, as crias das vacas de fracos úberes.
Alguns sonhavam com a liberdade, porém tal nome não podia correr na mata seca. Caso alguém despeitasse da sina, levava uma surra ou um tiro de encomenda, a depender do ofício ou do bem da pretensa serventia.
Pois o amor não é doce,
pois o bem não é suave,
pois amanhã, como ontem,
é amarga, a Liberdade.
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Cavalga nas nuvens.
Por outros padece.
Como escrevinhador de província, a montar nesses fiapos de utópicas nuvens, rabisco meu verbo e agarro-me à ilusão de que, a outros alumbrar, esses se compadeçam do meu povo e tornem-lhes a lida menos injusta e cruel.
Todo poeta cavalga no Pégaso da esperança. Todo poeta é cria de Dom Quixote.
Não deve sonhar o pobre,
que o pobre não vale nada…
Se o sonho do pobre é crime,
quanto mais qualquer palavra!
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Pelos caminhos do mundo,
nenhum destino se perde:
há os grandes sonhos dos homens,
e a surda força dos vermes.
Cecília, não iluda este cristão! Será que meu destino não se perdeu ao ter trocado de chão? Ao ter transformado Licânia apenas num sonho ao alcance da mão?
Ó Cecília, meu grande sonho ficou pendurado no galho da oiticica à beira do rio Acaraú; enganchou-se lá, quando eu cismei de espiar o horizonte, imaginando o mar se achegar do meu sertão.
A sombra da noite escura
encobre muito pecado.
A noite cai com a revoada do passaredo. Ela se estica por sobre os varais das casas, aproxima os casais traídos e enobrece a terra ao encobri-la de escuro, justo o que seria puro miasma e lodo.
Ninguém faz o que quer.
Ninguém sabe o que faz.
E os culpados quem são?
Zequinha, meu pai, nos ensinou que sorte tem quem mais labuta. Fazemos o que vem à mão, sempre limpa pelo sabão da palavra “pura, santa, milagrosa e boa”, ensinamento certeiro de nossa mãe, Maria.
Se há culpados por meus passos? Disso melhor nem prestar atenção. Melhor me sentir eu mesmo, useiro e vezeiro das conquistas e das largas falhas que plantei (e colhi) com o cabo da enxada da própria mão.
Que tempos medonhos chegam,
depois de tão dura prova?
Quem vai saber, no futuro,
o que se aprova ou reprova?
De que alma é que vai ser feita
essa humanidade nova?
Obs.: os trechos em itálico foram extraídos do livro Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles. — São Paulo: Global Editora, 2012 (1ª edição digital).
Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.
