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Confidências a Cora Coralina

Articulista de Navegos, filho do meio de Zequinha e Djanira, nascido à sombra das oiticicas, troca lembranças com Aninha, que se tornaria a Cora Coralina da poesia contemporânea.

*Clauder Arcanjo

Eu sou aquela menina feia da ponte da Lapa.

Eu sou Aninha.

Eu sou o Totonho do Seu Zequinha. O menino do meio da família de Maria, a Djanira.

Eu sou o que hoje, quase sozinho, canta Licânia, pois meu pai nunca queria que a esquecêssemos. Seu chão natal trocou de nome: Santana do Acaraú. Mas ele, já velho e bom teimoso, dizia-nos que nascera na Terra das Oiticicas, a qual, na sua carteira de identidade, ainda estava ali: Licânia-CE.

Eu o Antonio Clauder, assim sempre me abençoa nossa mãe. Eu sou Clauder Arcanjo, apresentação que encima meus livros. Ou apenas Clauder, o Biscuí de minha eterna musa.

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Era uma estória minuciosa.

Comprida, detalhada.

Sentimental.

Puxada em suspiros saudosistas e ais presentes.

E terminava, invariavelmente, depois do caso esmiuçado:

“— Nem gosto de lembrar disso…”

Aprendi, Cora, com os contadores de estórias do meu sertão, a seguinte lição: a estória que se preza (se mentira ou verdade, pouco importa) é aquela que nos prende a atenção. Os detalhes devem fazer os olhos esbugalhados, as tragédias a respiração ficar suspensa, e os dramas e beijos, de tão apaixonados, plantarem crença-esperança na coroa mais encruada e encostada.

Aprendi, Cora Coralina, que as estórias verdadeiras (sempre gosto de lembrar) podem ser sem eira nem beira, desde que belas e expostas por exímios contadores.

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Gente que passa indiferente,

olha de longe,

na dobra das esquinas,

as traves que despencam.

— Que vale para eles o sobrado?

Um sobrado no chão, destruído e exposto, faz com que o mundo perca um tesouro de lembranças que moravam em seus cômodos.

Quando as traves despencam, um enterro de espectros passeia perante os meus olhos. Nesse instante, paro o passo e louvo a todos, com uma cândida e silenciosa oração: “Pai nosso que estais no Céu santificado foi este casarão… Bendito foi o vosso reino, mas livrai-nos de outras demolições.”

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Na velhice dos muros de Goiás

o tempo planta avencas.

No monturo dos restos de minha Licânia, o tempo planta-me reminiscências. Delas, surgem-me as personas que povoam minhas histórias: contos de Licânia, romances de Sant’Anna, aforismos que ressoam no bulício da mataria, poemário a zoar no meu ouvido de provinciano.

Hoje, Licânia não me visitou… e a pena ficou-me sem nada a dizer, sem nenhuma serventia.

Estas coisas dos Reinos

da cidade de Goiás.

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E nunca realizei nada na vida.

Sempre a inferioridade me tolheu.

E foi assim, sem luta, que me acomodei

na mediocridade de meu destino.

A&&&

Tudo que criei, imaginei e defendi

nunca foi feito.

E eu dizia como ouvia

a moda de consolo:

nasci antes do tempo.

Nasci na cidade preferida, cada vez mais disso tenho plena certeza. Os tipos que descrevo, os sonhos que me acompanham, as desgraças a que assisti… tudo é patrimônio meu, herdado da província-mãe que me pariu.

Hoje, radicado em outras plagas, sei que a província nunca morre em mim, nem muito menos se envergonha das minhas má-criações.

Todo homem tem a terra que o merece.

Hoje, nada me falta,

me faltando sempre o que não tive.

&&&

Eu sou aquela mulher

a quem o tempo

muito ensinou.

Cora, eu sou aquele menino a quem o mundo assustou.

Ao subir no ombro do tempo, percebi que o longe futuro levava-me (ora aos pulos do cavalo galopeador, ora no barco da leveza) para perto dos meus. Da minha gente, da minha terra, do meu rio.

Aprendi que mais vale lutar

do que recolher dinheiro fácil.

Antes acreditar do que duvidar.

Sonhava em ser vencedor persistente, ousei ser poeta aprendiz, escrevinhador dos causos da província. Se eu acredito nisso? Eu nem ouso duvidar.

Dizia meu avô:

Quando as coisas ficam ruins,

é sinal de que o bom está perto.

Meu pai assuntava o nosso destino, enquanto nos demonstrava sua fé cega na educação: “Ladrão nenhum há de roubá-la de vocês!”.

E estudávamos, noite e dia, ferrados por aquela crença paterna.

procuro superar todos os dias

minha própria personalidade

renovada,

despedaçando dentro de mim

tudo que é velho e morto.

Obs.: os trechos em itálico foram extraídos do livro Melhores Poemas Cora Coralina, seleção: Darcy França Denófrio, São Paulo : Global Editora, 2012 (1ª edição digital).

Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

O QUARTO DE CORA CORALINA