Clauder Arcanjo*
Somos folhas breves ondem dormem
aves de sombra e solidão.
Há breves instantes em que a vida se revolta conosco, faz muxoxo com relação às nossas escolhas, ri de nossos deuses, tripudia de nossos troféus… para, em seguida, voar no céu de nossos olhos, banhando-os com a tinta da sombra e o túrgido silêncio da solidão.
No ardor do verão
todo o rumor é ave.
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Sobre as ervas
o leite
espesso do silêncio.
Na placidez da madrugada, fingi contentamentos, Eugénio. Havia, em minhas mãos “nucas delicadas”, e tudo ao meu redor era anúncio de um tempo de dócil verão.
Quando acordei, senti em meus lábios a sangria das ervas de Licânia. Com pouco, o meu coração se deleitava, mesmo sabendo que arderia na espessa monotonia do dia.
Em lábios muito jovens arder é tão lento.
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Há rios que chegam subitamente
atraídos pelo fulgor dos dedos.
No limiar da chuva, a memória caminha para as areias de Licânia. Pouco importa se estou em terras longínquas ou estrangeiras; todos os remansos, para mim, são caudalosas carícias a exaltarem, num coito febril, as ribeiras do rio da minha província.
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Cantam para amanhecer,
os pássaros,
mesmo quando escolhem
para amigo
o ramo mais amargo.
Ou para não morrer.
A alvorada da minha província sempre tem o sustenido vibrante do passaredo. Teimosos e pontuais, insistem em brindar as manhãs amargas com uma espécie de sonata obstinada e miraculosa. Nossos pássaros são deuses, garantem o milagre da continuidade da vida.
A cidade é agora de porcelana branca.
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O silêncio é a água destas pedras
onde a noite se estende pra morrer.
Saibam todos que, nas pedras do meu rio, habitam as lendas que sobrevivem em mim: uma índia-mulher a estender roupas brancas no varal do céu limpo para, em seguida, tanger os cavalos alvos para o amojo das nuvens de janeiro; um homem-vaqueiro que, vestido de gibão e coragem, campeia, nas madrugadas quentes, o boi gordo da fartura em direção ao curral da invernia que se anuncia.
Se não ouvirmos o ribombar dos trovões em fevereiro, a índia e o vaqueiro hão de chorar a noite magra de águas, amasiada com a morte e a precisão nos desmundos do sertão de Licânia.
Também tu,
Também tu,
também tu suspiras
por águas que lavem
o pranto, as feridas,
e se possível o mundo.
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Fazer duma palavra um barco
é todo o meu trabalho
ou da flor do linho o espelho
onde a luz do rosto cai
excessiva.
— Você, ao (re)ler os versos do poeta Eugénio de Andrade, leitor arisco, verá o “dia limpo como um adro deserto”, e assistirá, “lancinante e em frêmito”, ao seu corpo mergulhar no mundo num “fulgor de sol ou sangue ou sal.”
É pouco o que desejo,
e desse pouco me despeço.
Os versos perfeitos, suprema utopia, não podem fenecer. Uma vida sem tradução é letra-terra morta.
Obs.: os trechos, em itálico, foram extraídos da obra Poesia, de Eugénio de Andrade. — Porto: Assírio & Alvim, 2017 (1ª edição).
Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.