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Confidências a Ferreira Gullar

Colaborador de Navegos evoca suas leituras de Ferreira Gullar em texto que revela a variedade dos guardados em seu já famoso e multifacetado Baú de Licânia.

*Clauder Arcanjo

 

Aqui se inicia

uma viagem clara

para a encantação

Preciso do teu alento, Gullar, que a vida, a pendurar-se no varal da dor, oferte-nos a esperança de um pão fresco, de uma praia de areias limpas, ou, quem sabe, do canto limpo de um bem-te-vi nas ribeiras de Licânia.

Se ainda há um rio dentro da noite veloz? Sinceramente, não sei.

 Entre o que é rosa e lodo necessário,

passa um rio sem foz e sem começo.

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O mito nos apura

em seus cristais.

Na noite corpórea, ando a escrevinhar os mitos possíveis de minha gente — na vã tentativa de perpetuar o meu povo, de transmudá-lo em nação altiva —, a cravar neles o apuro de um cristal.

O mito, em muitos casos, é o bicho mais avesso à literatura.

Meu povo e meu poema crescem

juntos

como cresce no fruto

a árvore nova

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E sobretudo é preciso

trabalhar com segurança

pra dentro de cada homem

trocar a arma da fome

pela arma da esperança.

E, caro Poeta Ferreira Gullar, a esperança anda tão furtiva, com seu luzeiro tão cambiante, que, algumas vezes, dá medo de vararmos o campo de batalha das ruas.

Dentro do homem, instalou-se o gume do medo, a foice da mentira, e o açoite é o troféu que orgulha muitos “homens dignos”.

&&&

O preço do feijão

não cabe no poema. O preço

do arroz

não cabe no poema.

Suspeito, Gullar, que até a aurora não cabe no poema; a alvorada anda tão desenxabida, maculada pelos crimes dos homens. Não cabe no poema o preço que se paga para subir na vida.

A lida fede a esgoto, e os ratos do trono não abdicam.

Não quero a poesia, o capricho

do poema: quero

reaver a manhã que virou lixo

&&&

Uma parte de mim

é só vertigem:

outra parte,

linguagem.

A maior parte de mim (não saberia julgar se a melhor) é só remorso: pelo verbo não propalado, pelo vômito não exposto, pela fúria contida.

Quanto à linguagem, melhor nem mencioná-la: é vertigem, nojo de dar dó.

sou possivelmente

uma coisa onde o tempo

deu defeito

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Acho que mais me imagino

do que sou

Os leitores de poesia, quando se deixam alumbrar, imaginam o imaginado, em sigilo, pelo poeta. Enquanto este… simplesmente sonha em ser o que foi por ele mesmo imaginado.

E de imaginar a imaginar, entre espelhos e ilusões, a imagem assume o corpo e surge, então, o verbo-poeta-encarnado entre barulhos candentes.

o poema péssimo

revela

ao ser lido

que há no leitor

um poeta adormecido

Verdadeira história de um poeta sujo (e adormecido em meio ao assombro de muitas vozes).

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a cidade está no homem

mas não da mesma maneira

que um pássaro está numa árvore

A oiticica sempre esteve em mim, tão forte quanto as raízes de Licânia.

A província vale tanto quanto a genealogia de suas árvores, tanto quanto o cantar do seu passaredo. A cidade vale (e se completa com) o testemunho dos seus poetas; o resto é puro mito (bendito mito).

e o mundo

no poema

se sonha

completo

Obs.: os trechos em itálico foram extraídos da obra Melhores poemas de Ferreira Gullar, seleção de Alfredo Bosi. — São Paulo: Editora Global, 2012 (1ª edição digital).

Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.