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Confidências a Ferreira

Um dos escritores mais representativos de sua geração, o mossoroense Marcos Ferreira é exaltado aqui por nosso atento e arguto Colaborador voltado para o resgate da poesia e divulgação do que se produz de novo no Brasil.

Clauder Arcanjo

[email protected]

 

Agora habita o meu olhar

noturno este vazio estranho,

esta memória de chuva

que descolore o pôr do sol,

que emudece as palavras

e silencia o chocalho das horas.

Noturnos, os poetas se emudecem no silêncio das madrugadas, a fim de encontrarem a raiz poética, (re)encarnada na cumeeira do vazio.

Enquanto a cidade dorme, a poesia se apresenta, antes do nascer do sol, como oferenda legítima e mundana do (des)colorido atormentado da vida.

Pois não sou este espírito a esmo

Que me busca entre sombras e abalos

Na infinita procura de si mesmo.

Os passos

no corredor,

a luz acesa.

O perfume

da inocência

brincando

entre as mãos

pervertidas

do vento.

— Poeta Marcos Ferreira, há sempre em nós uma confissão tardia! — Assombra-se Carlos Meireles, entre palavras de pecado e farta remissão.

Eu olho para a parede alta e nua à nossa frente. Um fero obstáculo a nos usurpar da liberdade de flertar com a arquitetura das nuvens, de antever o bulício dadivoso dos arrebóis.

Apenas o céu

emoldurado

na janela,

a tia nas orações

— tateando

o paraíso

nas contas

encardidas

do rosário.

 

Perdi meu romantismo. Não sou mais

O amante, o cavalheiro, o menestrel

— O ingênuo cantador de madrigais.

O que se perde, Poeta, mais se nos (re)define. Defino-me mais pelo que abandonei, desrespeitoso com meus despojos, do que pelo que levo na algibeira das minhas certezas vãs.

Hoje, neste ranzinza habitáculo em que meu corpo habita, quero recobrar os meus românticos perdidos, mas o mundo, cruel engenho, já cuidou dos seus funerais.

A poesia só me encontra quando me perco, pecador por palavras, nos seus cruentos madrigais.

Estremeço à tua passagem

e meu olhar de chumbo

se afunda na ilusão movediça

do teu colo de aromas.

A tarde boceja envolta

num pijama de arrebol

e as últimas cardigueiras

desaparecem na linha

ensanguentada do horizonte.

Ontem voltei à rua dos

meus tempos de criança…

O fantasma do amor imberbe

atravessou-me num abraço diáfano.

Sobre a laje negra do asfalto

brincava o doido esqueleto

do meu cavalinho de pau.

A infância usurpa o nosso presente. De quando em vez, joga seus espectros em nossa frente. E, cabisbaixos e saudosos do ontem, caqueticamente, nos tornamos fantasmas do nosso passado.

Hoje, Poeta, esperarei a assombração do eu-menino com a roupa de homem, em frente à porta da frente. Se ele passar por mim e entrar… Bendito seja eu, Ferreira!

 

Acho que a velha casa

dos meus sonhos mirins

ameaçou um sorriso de janelas.

Ainda hoje sonho com a velha casa de Licânia. Entre os meus, colhido pelos tipos da rua, recebi as minhas lições de maior valia. Na nossa rua, não havia pobres nem ricos, existiam amigos e amigas. Gente boa, gente crédula, gente simples.

Cresci e me formei. E o mundo, Poeta, depois de Licânia, só me deseducou; e, hoje, não sonho mais com o sorriso do nosso janelão da frente. Lições de menos-valia.

— E quando retornarás a Licânia?, você me indaga.

E Licânia algum dia saiu de mim?! Se tu te referes a este meu esqueleto, ele será plantado na terra que me viu chorar, e muito sorrir no peito.

Mesmo que a luz

de nossas almas

se apague e o tempo

nos arraste para

o mundo das sombras

e da saudade,

haverá sempre esta

candeia de esperança

ardendo na solidão

lacrimosa do meu peito.

 

Ontem concebi

um poema

bastardo.

Cumpre-me agora

escrevê-lo,

pois larguei-o

entre as águas

do banho

e ele se afogou

na garganta

escura do ralo

Há versos concebidos na antevéspera do escarro; outros, na comunhão de um afago; alguns, não raros, no lusco-fusco da esperança. São raros os que resistem ao tempo, juiz cruel de muito enfado.

Não adianta te cercares das lições comezinhas dos vates de outrora, nem das homilias poéticas dos modernosos de agora, pois o poema, aprendiz de poeta, só se entrega (e se revela) a quem nunca o espera, e dele se torna um fiel escravo.

Um sopro de angústia vai movendo

as dobradiças do silêncio.

As teias do tempo se espalharam

por todos os cômodos e móveis.

Sequer o velho relógio de pêndulo

reagiu à minha súbita presença.

Vê, em frente ao teu espelho, o sopro lívido da tua última quimera se esvair por entre as nesgas do silêncio, e se acomodar nas engrenagens das horas extremas.

O mais é tudo sombra e frialdade.

 

É tarde… Um galo canta no vizinho.

Então ele retorna e continua

Os versos que deixou pelo caminho.

Levanta, Marcos, os raros leitores de poesia aguardam o recital do teu soneto esquecido na última tarde. O primeiro quarteto, em alexandrinos perfeitos, ultrajava a dor que te tornara forte; o segundo, rimado e bem urdido, decantava a flor que tu havias tido; o primeiro terceto, arejado e reverente, tecia a família que, de ti, se orgulhava. Já a última estrofe, Poeta, toma cuidado!, pois daqui antevejo o traquinas Chico de Neco Carteiro a tentar escandir-lhe os versos, com sua voz rascante de augusta e rutilante matraca.

É de lábios

e línguas

este anseio

que deriva

da curva

do teu medo

e se gruda

nos fios

do silêncio.

Na curva do arremedo, os poetastros cevaram os espectros dos seus pretensos poemas. De paletó e gravata, cercados de muitos festejos, eles se esqueceram de convidar a musa humilde.

Acharam, por certo, que, para eles, não havia segredo. Cumularam-se de saberes, outorgaram-se detentores de uma fama de araque… e se defrontaram, fatal desencanto, com o “poema” oco, perdido na tepidez funérea do vazio.

Abracei-a com força, mas não creio

Ter podido prendê-la muito assim…

Ela foi e eu fiquei ali no meio

Do silêncio noturno do jardim.

No silêncio da noite, sem a algaravia dos falsos arpejos, aprendi que a graça da poesia só nos alumbrará se riscada em laivos transparentes, pendidos, com a força solfejante da cola de uma mísera rima, sob a platitude lírica do abismo.

Não te maldigas pela sorte escassa

Nem pela vida muita vez tão dura…

Aqui no mundo nada sai de graça,

Ainda mais quando se tem ternura.

Quando a última ternura me caiu no colo opresso, nem percebi quando se deu tão sublime esmola, obrou-se o milagre de me ver em festa, quando todos lá fora se consumiam em desenganos.

E, se ao fim e ao cabo, tu, ternura, me tornares imprestável para a lida cotidiana, só me restará a lira… e a sina malsinada de me fazer poeta.

Hoje amanheceu bonito

Como fosse primavera…

Sem metáforas de sombra,

Nem pedaços de quimera.

 

Declaro, para todos

os fins que se fizerem

necessários, que não possuo

bem algum neste mundo

em que os homens

declaram a guerra

e sonegam a paz

E tu, Marcos Ferreira, cuida de assinar o teu último armistício poético; eu, por aqui, rabiscarei o testamento do meu degredo.

Entre os fulgores da morte, as sonegações da paz, nós, tortos poetinhas, finalizaremos o nosso espólio, declarando fé no amanhã, apesar do risco de sermos fuzilados por isso.

No coração da noite segue uma tristeza

Com passos muito lentos e desmotivados.

Obs.: os trechos em itálico foram extraídos do livro A hora azul do silêncio, de Marcos Ferreira. — 2ª edição — Mossoró: Editora Verboletras, 2016.

Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.