*Clauder Arcanjo
Pesada, a angústia escorre na ampulheta…
Das minhas mãos plenas de angústia, Helena, brota um veio de areia na ampulheta malquista. Enquanto exaure as horas dos meus dias, conta, com os frutos finos do barro, o fim pesado que me anuncia.
Melhor não olhar para essas mãos. Aliás, melhor seria, Kolody, arremessá-las para longe do relógio do meu rosto. E, a partir do brilho de tal revolta, apenas reparar no singelo presente arfante. Sublime enigma que consagra a sua volúpia final entregando-se tão só ao sonho mais errante.
Contínua,
Enervante,
Avassaladora angústia
Dos que desejariam suster a derrocada
E nada podem fazer…
E nada podem fazer.
&&&
Tu, Senhor, que repartes os destinos:
Por que me deste o árido quinhão
De sonho, de tristeza e solidão?
— Poetisa de raiz ucraniana, regaste, com os teus versos de jasmim, muitos áridos jardins! — Proseiam os meus dois companheiros, Carlos Meireles e Acácio, de modo uníssono.
Com pouco os dois se calam, a fim de ouvirem a voz epifânica de Kolody, límpida e pura como a chuva de um domingo abençoado:
No limiar de mundos ignorados,
Onde aportaram suas naves quietas,
Relembro a alma sonora dos poetas,
A alma sensível dos predestinados.
&&&
Quero ser o cristalino fio d’água
Que canta e murmura na mata silenciosa.
Toda grande poesia brota de um veio cristalino, fonte de versos puros e preciosos, a dessedentar os homens com o cálice do vinho-poema-vida. Ao cantarmos (e decantarmos) tais versos, o mundo se nos revela, misteriosamente, em sua plenitude; a dor pode até se aguçar, mas é uma dor que pune, ao tempo em que nos extasia.
A poesia é o reverso do parto para uma nova concepção.
Atrás de mim, vozeia e tumultua,
Anseia e chora, e ri, arqueja e estua
A imensa multidão dos ancestrais,
Que me bate e rebate, inexorável,
Como o oceano em ressaca açoita o cais.
&&&
Pelos penhascos das horas,
A vida se precipita.
Não repareis nos ponteiros dos relógios que vos cercam, ó filhas de Cristo! Eles estão mancomunados com a litania das horas, arautos do precipício. Adoram serem observados e, quanto mais o são, mais eles se apressam em desfilarem, apressados, no jardim de tulipas negras, aziago marcador do tempo.
E, quando procuramos por nós, as cãs já assumiram a cabeça, e a vida, coitadinha e efêmera, do penhasco alto nas águas tumultuosas se precipitou.
Não repareis nos ponteiros dos relógios que vos cercam, ó filhos de Cristo!
Que aluvião de banalidade
Arrastam essas águas tumultuosas
Em sua trajetória efêmera!
&&&
É meio-dia em minha vida.
Um mensageiro inesperado
Vem prevenir que apresse a lida,
Como se fosse anoitecer.
O meio-dia é a parte mais perigosa do dia. A manhã mal se foi, a tarde ainda não se inicia, e nós, ocupantes deste meeiro, não nos prevenimos para o avanço da lida.
— E alguém se previne da vida em Licânia?
Não, Kolody, minha gente sempre acredita no milagre da noite. Noite que, para os licanienses, cuida de nos perdoar as faltas, de nos redimir dos pecados, bem como de recobrir-nos com o manto de ressurrectas forças.
Só se morre em Licânia, quando se perde a fé no vento miraculoso da noite, e a terra se lav(r)a de seca.
Vento da noite, ainda é cedo!
… e nem lavrei a terra agreste.
&&&
Semente oculta na polpa do fruto.
A morte habita o âmago da vida.
Haveremos de flagrar, na pálida semente, a esperança do pomo dadivoso da fruta, e de poupar do fruto o patrimônio da telúrica semente.
Semente oculta na polpa do fruto.
A vida brota do âmago da morte,
Imperecível.
O fruto nos encanta e contenta, no entanto somente a semente nos eterniza. Com a sua morte, eis o milagre: frutifica-se, em vera eucaristia, para uma nova vida: pão de Deus.
A morte espreita, em silêncio
O vivo jogo dos homens
No tabuleiro do tempo.
&&&
Como o menino
dentro da noite,
longa e deserta,
canta e assovia
para iludir
os seus fantasmas,
sigo cantando
por um caminho
mal-assombrado
pelos meus sonhos.
Canta, Kolody, como um fanal neste mar de desventuras, dadivoso farol neste pasto de seres-morrentes. Precisamos das cantigas de Helena, só assim resistiremos (e venceremos) tantos cavalos virulentos, fantasmas de outras Troias.
Cheiro de selva,
gosto de sangue
nas mãos feridas
pela beleza.
Os poetas caminham por entre a selva de tanto silêncio, a ouvirem o pranto-soluço dos esquecidos. Por entre os lamentos, com o sangue dos inocentes no bico da pena, de mãos feridas em solidariedade às dores alheias, eles (re)inventam o perfume da beleza, como bálsamo para as feridas do mundo. Rogando a Deus que, dali em diante, o milagre habite-nos em formas de gestos-rosas, a reflorarem nas nossas mãos de vidro.
Mas na leveza
da obra esculpida,
laivos de sonho,
seiva de vida.
A leveza é condição de força para surpreendermos o mal que nos espreita no caminho à frente. Nossas flechas levarão a seiva do sonho, colhida no centro da obra esculpida; e o sonho só nos achegará se tivermos passos e versos leves. Levíssimos, como um bom sono, laivos dos justos.
Quem chorava em meu sonho?
Eu ia, deslembrada,
pelos caminhos sem nexo
no escuro sono,
quando alguém soluçou.
Foi o suficiente, bastante um soluço para que haja existência. Basta um suspiro para que se instale o amor. Basta um grito malposto para que se instale a dor. A aflição do esquecimento, do abandono, do desamor.
E, se ao final, tudo lhe faltar: soluce, suspire, grite… mas não desista do rego da flor.
Quem soluçava em meu sonho,
tão perto que me acordou?
&&&
Debruço-me à beira de mim
e sinto a vertigem do inviolável,
guardando o espelho profundo
que dorme no fundo.
E tu, Helena Kolody, te debruçaste sobre os versos, à beira de ti e de mim. Então, a vertigem do inolvidável se projetou sobre o espelho da tua e das nossas almas. Lá, a vigiar o tempo, Narciso dormia o seu sono mais profundo.
Não sou a imagem no espelho
Ao fim, Kolody, bem sei, haveremos todos de acordar e seremos felizes, e saudáveis de novo. Um pouco mais diferentes: levaremos rosas nos lábios finos e abraçaremos com cheiro de alfazema e utopia.
Cada momento acrescenta
e subtrai o existente.
Obs.: os trechos em itálico foram extraídos do livro Viagem no espelho, de Helena Kolody. — 3ª edição — Curitiba: Editora da UFPR, 1997.
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.
