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Confidências a Hilda

Do baú de Licânia, o escritor cearense-potiguar dialoga com a obra de uma das últimas grandes escritoras de língua portuguesa.

*Clauder Arcanjo

Debaixo dos teus dois braços

trazias rosas molhadas.Tens muito de mim, Hilda, carrego uma tristeza que banha com meu pranto as flores que conduzo por entre a melancolia do mundo. Penso (melhor, suponho) que há em todo Poeta um quê de florista. A cuidar do mundo, a regar os jardins suspensos, a ofertar seu canto… até quando o mundo faz troça dessa falta de siso.

Os homens de bem

me perguntaram

o que foi feito da vida.

E eu me inquiro: para que nos serve tanta lida, se não cremos na vida?

Não ligues para os meus maus modos, Hilda Hilst. São pretensas perguntas-respostas que me(se) (in)surgem, quando os meus olhos se encantam com o coito da lua por entre os lençóis das estrelas, a gozar e nos banhar com o sêmen de fatal brilho de rapariga em flor.

Eu cantarei os humildes

o homem sem amigos

o amante sem esperança

de retorno.

&&&

Se ao menos existisse

em nós a eternidade.

Ela existe, Hilst! Sim, a eternidade existe num dos teus versos dissolventes, daqueles que tão somente nos dão um naco de paz por entre duas crises de intenso sofrimento.

&&&

E fiz de tudo…

Fui autêntica, durante algum tempo.

Fui inquietude e fragilidade.

Tão autêntica, que o frágil instante se fez puro êxtase entre teu sexo: doce e intenso, como deveria ser a vida de uma monja.

Amadíssimo, não fales.

A palavra dos homens desencanta.

&&&

Não há silêncio bastante

Para o meu silêncio.

Nas prisões e nos conventos

Nas igrejas e na noite

Não há silêncio bastante

Para o meu silêncio.

— Hilda, tanto silêncio não cabe na memória da Poesia. Em seu bojo, de barro queimado no fogo eterno, só cabe o verbo-verso que desperta na florada da manhã para morrer no botão do cair da tarde. Sendo enterrada, entre risos e prantos, no esquife do silêncio. E isso, Hilst, já não nos é o bastante?

&&&

Difícil é escolher

Entre viver e morrer.

Difícil é o escutar-se

E ao mesmo tempo escutar

Rigores que vêm da terra

Lirismos que vêm do mar.

Hilst, ora escuto o rigor telúrico que me (re)cobra o chão de Licânia. Lá não existe mar, contudo há um lirismo que vem dos oceanos ancestrais. Ora escuto o marulho das praias que, hoje, se fizeram sertão; ondas que ficaram dependuradas no alto das carnaubeiras, acenando para os homens que se perderam do lar (mar).

Rica de amores

Tive perdida

Minha tão pobre

Tão triste vida.

Nos amores, nos destemores, a tão triste vida sonha com o ancoradouro utópico da felicidade.

Se há muito o que inventar por estes lados

O que sei com certeza são meus fados

Exigindo verdades e punindo

Os líricos enganos da beleza.

No ombro humano, há de pousar um pássaro sem plumas, navegante de longos descampados, a trazer no bico a cor do lirismo, a carregar nas asas fáusticos fados.

&&&

Ouvi continuamente muitas vozes.

Umas de fogo e água, tão intensas

Outras crepusculares

— Você, ao chegar aqui neste instante, leitor atônito de vozes muitas, amigo do fogo, do ar, da água e da terra abissal, verá em Hilda uma confidente leal. Nela, o coito alquímico da vida com a poesia; em cada poema, as reminiscências de um crepúsculo orgástico sem final.

E era tanta a vontade de ver mais

Que uma névoa descia sobre mim.

Desce sobre mim, bendita névoa, cega os meus olhos com a pátina da tua onírica vaidade.

Ouvirei a tua vontade a (res)soar nos meus ouvidos, quanto mais escuto os esgares da tua carne, Hilda. Tu, cria de um mundo convulso, filha adotiva de uma deusa feroz e encantada.

Penso linhos e unguentos

Para o coração machucado de Tempo.

Obs.: os versos, em itálico, foram extraídos da obra Da poesia, de Hilda Hist. — São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letra