*Clauder Arcanjo
A vida é breve, a alma é vasta:
Ter é tardar.
Preso às obviedades da vida, caminho como se o infinito estivesse à minha frente.
Licânia, o meu mundo de ontem, se achega dos meus passos, a me relembrar dos meus mortos: papai, meus tios, minhas tias, a velha (e boa) Lídia, os anjinhos que passavam em caixões azuis para o cemitério cinza.
Se sei que ter é tardar? Nãp sei se sei. Apenas, pessoalmente, iludo-me que viver é lutar. Que maçada!
O mito é o nada que é tudo.
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Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Nesta manhã distante dos meus, descubro um porto com navios silentes em águas calmas.
Observo a marina; e não descubro o mistério de partir e chegar, de chegar e partir, Pessoa. Tão somente os meus olhos se revelam o cais do rio da minha província.
Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
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Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
E, Pessoas, leio e releio os teus inumeráveis heterônimos e não decido qual deles mais me alumbra.
Se pastoreio as nuvens, ouço o pulsar de um deles. Se mergulho na metafísica do nada, um outro espeta-me o juízo. E, se por acaso, navego em tua Mensagem, tu mesmo me advertes: “Dentro do homem, Arcanjo, há vários poetas”.
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Há metafísica bastante em não pensar em nada.
Rei não fui, engenheiro me fizeram, poeta me iludi.
Hoje, nesta manhã abraçado com o vazio e a aflição, cismo em não pensar. Na janela, em verdade, o Nada me observa.
A vida teima em me filosofar. Mas não me entregarei fácil, estejam certo.
Há dois males: verdade e aspiração,
E há uma forma só de os saber males:
É conhecê-los bem, saber que são.
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Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Soltei o louco que estava preso dentro de mim, o pobre homem sentou-se junto à sarjeta, e passou a rabiscar certezas de outrora na água suja que corria na coxia da rua.
Quanto ao que escreveu, melhor nem pensar. Poderia destronar homens e mitos há séculos festejados. Viver é não crer nos credos dos santos loucos.
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
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Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
Os leitores, ao se acostumarem (ou se alumbrarem) com os teus (nossos) versos, Fernando Pessoa e tais, se enlouquecem com tuas rimas, se apiedam de tanto fingimento em teus poemas em versos livros, e, bestialmente, procriam-se.
E a Poesia teima em renascer, sem metafísica, na esquina menos festejada; e, assim, festeja-se o Nada!
O abismo é o muro que tenho
Ser eu não tem um tamanho.
Verdade não há; apenas, e tão só, um muro alto, construído com os tijolos dos temores da província, e que se deixa infestar com a hera cadavérica do abismo.
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Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
No meu reino infante, não houve mar, nem cais. O rio da minha província cumpriu a salgada missão de me instruir com seus mitos, tipos e ritos.
O canoeiro da minha província navegava com fatal destemor nas enchentes. E os remansos, as ilhas e o soar dos búzios me ofertavam o mistério das tormentas.
Ó Acaraú, Tejo de Licânia! Vales-me mais de que todos os oceanos, porque em ti espelhei o meu pequeno, triste (fatal e venturoso?) céu ribeirinho.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu
Mas nele é que espelhou o céu.
Obs.: os trechos em itálico foram extraídos da Obra Poética Completa: Volume Único (Edição definitiva), de Fernando Pessoa (edição digital).
Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.