*Clauder Archanjo
No porta-malas do meu automóvel
levo o anjo escondido…
Quando chegamos a um descampado,
ele sai de dentro, distende as asas, belo com a Vitória de Samotrácia…
Nós regressaremos ao teu colo angelical, Quintana. Chegaremos, como um passageiro clandestino, embalado pelo vento da tua pureza, quintessência-quintanar de vovô poeta. Daqueles bons velhinhos de barba branca por tirar, de orelhas de elefante travesso, sempre a nos banharem de azul e nos ninarem com serenatas de canções celestiais.
Penso que Deus tem o rosto de Quintana. Senão não nos seria Deus, seria apenas um homem fraco!
Fora da poesia não há salvação.
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E onde estaria a tua casa?
Ralharias de pronto comigo:
Os muros móveis do vento
Compõem minha casa-barco.
— Feiticeiro de Alegrete, o Grande Mágico e seus poéticos feitiços! — Alardeia Companheiro Acácio, preso dentro de uma gota d’água, isolado deste mundo de tantas tolices.
No horizonte, um trem inesperado rompe a solidão da tarde cinza; dentro dele: Bandeira, Cecília, Drummond e uma banda de música; a segui-los, um tropel de cavalos alados com seus montadores trigueiros.
No entressono da noite, haverão de depositar o segredo do poeta ladino? Canção da primavera, silêncio noturno de vela para a cidade adormecida.
Este silêncio é feito de agonias
E de luas enormes, irreais,
Dessas que espiam pelas gradarias
Nos longos dormitórios de hospitais.
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Da vez primeira em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, de cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha…
Teus assassinos poéticos, Mario, foram levados, desnudos e mudos, para o deserto do esquecimento. Lá, como forma única de redenção, eles ficarão a escrever os teus poemas na areia fina, usando como pena as próprias mãos.
Se os escritos não florescerem na manhã seguinte, o castigo redobrará de antemão. Serão fiscalizados por corvos, chacais e risonhos ladrões.
Eles ergueram a Torre de Babel
Para escalar o Céu,
Mas Deus não estava lá!
Estava ali mesmo, entre eles,
Ajudando a construir a torre.
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Os grandes animais invisíveis e silenciosos da insônia
Vigilam meu corpo para me devassarem.
Adivinho que são felinos por sua incansável paciência.
Também, Quintana, em Licânia, há animais silentes a correrem pela capoeira da imensidão. De madrugada, abespinhado, escondo-me embaixo do manto de Senhora Sant’Anna. Então, observo os retratos na parede das casas, com seus vultos antigos e gastos, a apontarem os seus dedos felinos para que os bichos descubram logo o meu esconderijo.
Sant’Anna, na sua incansável paciência de matrona, nem dá crédito a tudo isso. Serena, ela me põe no macio colo e me acaricia com cafuné, como fazia em Maria, a mãe de Cristo.
Quem viria bater à minha porta?
Ai, agora era um outro dançar, outros os sonhos e incertezas,
Outro amar sob estranhos zodíacos…
Outro…
E o terror de construir mitologias novas!
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Os aviões abatidos
são cruzes caindo do céu.
O mundo da guerra é o mundo da (anti)poesia. Se os poetas dominassem o mundo, a guerra seria de estrelas azuis sobre as nações que sofrem a dor da fome. Os vates deflagrariam ondas de alegria por sobre os terrenos-oceanos invadidos pela maldita exclusão.
Dos céus dos poetas — Quintana como guarda-mor já cruza os dedos — cairão apenas sorrisos de benfeitorias. E versos em forma de oferta e oração!
E quantas vezes um de nós, ao levar o copo ao lábio, interrompe o gesto e empalidece… — O Anjo! O Anjo Malaquias! — … E então, pra disfarçar, a gente faz literatura… e diz aos amigos que foi apenas uma folha morta que se desprendeu… ou que um pneu estourou, longe… na estrela Aldebaran…
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Todos os poemas são um mesmo poema,
Todos os porres são o mesmo porre,
Não é de uma vez que se morre…
Todas as horas são horas extremas!
Nas horas extremas, Quintana, socorro-me da tua poesia. Penduro-me nas asas dos teus versos e galopo para os sertões de Licânia. De olhos fechados, crê-me, entrego-me ao (desa)tino do teu cavalo chucro, pois sei que o seu nariz de palhaço saberá levar-me na direção do (re)descobrimento.
Lá pousando, redescubro a lírica litania das ruas povoadas por gente simples, que falavam o bom (e sábio) português do meu sertão. Redescubro as procissões de homens e mulheres crentes, entregues à fé em Deus e ao trabalho em comunhão.
Sem mencionar (não fiques chateado comigo!) que reaprenderei um antigo valor: o maior poeta é filho do meu chão: Padre Antônio Tomás. Antônio, como eu, para glória minha. Tomás, como toda aquela legião. Padre, pela graça da poesia divina.
Antes, todos os caminhos iam.
Agora todos os caminhos vêm.
A casa é acolhedora, os livros poucos.
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas.
No alpendre do casarão sertanejo, Quintana, entre uma conversa e outra com os caboclos de Licânia, hei de servir, primeiro ao vovô Sebastião, um café donzelo. Sem me esquecer do Diniz, meu tio materno, nem de Gerardo, meu tio paterno; eles, com certeza, se achegarão. Terei que chamar por Paizinho, vovô Lourenço, tão tímido e santo, haverá de pensar que não, eu precisaria servi-lo não. Pô-lo-ei a conversar com seus filhos Arcanjo e Miguel, com tio Nonato a contar suas piadas de ocasião. Sem nunca me esquecer de que tudo farei sem pecar (“porque pecar com inocência não é pecar…”), sob as graças e pela honra do meu saudoso pai, leal timoneiro dos meus passos e fiel depositário (e signatário) das minhas (in)decisões.
Que eu vou passando e passando,
Como em busca de outros ares…
Sempre de barco passando,
Cantando os meus quintanares…
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Agora não sei esperar mais nada
Desta nem da outra vida,
No entanto
o menino
(que não sei como insiste em não morrer em mim).
Quintana, o menino que mora em ti vale por todas as vidas. Quanto mais arteiro, melhor. Quanto mais impulsivo, maior. Só não o chame de “danado”. Minha mãe não gosta dessa palavra, não. Diz ela, não sei baseada em qual ciência ou etimologia, que advém da palavra “demônio”. E nela, nem em nossa língua, deveríamos pôr a mão.
Valei-me, minha Nossa Senhora!
Nesta e na outra vida, por que não?
Tenho uma cadeira de espaldar muito alto
Para o visitante noturno
E enquanto levemente balanço entre uma e outra vaga de sono,
Ei-lo
Ei-lo a soprar-me alguns achados poéticos, melhores do que os de plantão. Ele nos traz, no seu bisaco de visitante noturno, prendas de outros luares, bem como de outros sertões. Uma palavra lavrada em vidro, outra em diamante de origem celestial, sem relacionar as invencionices com os meus trastes, a (re)descobrir neles botijas que eu, antes, nunca vira, não.
Se achegue, visitante noturno! A cadeira é sua. Com humildade e orgulho, sou todo ouvidos, sangue e coração.
Meu Deus, que vontade me deu de escrever um poeminho
Olha, agora mesmo vai passando um!
Pst pst pst
Vem para cá para que eu te enfie
Na fieira de meus outros poemas
O quê, algo te alumbrou?! Deixa-me ver se eu aprendi a lição que tu bem “empoetaste”: a poesia nasce em todo e qualquer lugar, de toda e qualquer situação. Como no sereno da manhã, apesar da canseira que levamos na vida.
Vou ver se te escuto melhor ali na esquina.
Pst pst pst… Vem, Quintana, o mundo da poesia é grande, mas este poeta provinciano é bem pequenino. Bem pirrototinho.
Escafedeu-se.
No mundo das palavras, qualquer tempo é tempo de verso certo.
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Porque a poesia purifica a alma
… e um belo poema — ainda que de Deus se aparte —
um belo poema sempre leva a Deus!
Levarei dias e noites, Mario Quintana, a levitar com teus quintanares. Na janela mais a frente, há uma criança presa pelo medo, se eu recitar um verso teu (“… a vida é breve, e o amor mais breve ainda…”), ela subirá até a Lua. Aquele menino surrado, abandonado no terreno baldio aqui ao lado, basta-lhe um rojão de uma estrofe tua (“Nunca a água foi tão pura… /Quem a teria abençoado /Nunca o pão de cada dia /Teve um gosto mais sagrado.”) para que ele saia, fulgurante e pleno de vida, do meio da rua. “Amar é mudar a alma de casa.”
Teus poemas, Quintana, são a melhor política social!
Se as coisas são inatingíveis… ora!
Não é motivo para não querê-las…
Que tristes os caminhos, se não fora
A mágica presença das estrelas!
Obs.: os trechos em itálico foram extraídos do livro Antologia poética, de Mario Quintana. — Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.