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Confissões de Renato Caldas

Fundador de Navegos relembra seu penúltimo encontro com o maior jogral que o Rio Grande do Norte já teve, autor de Fulô do mato, flagrado em seu ocaso em um reservado em um tradicional bar no Açu..

*Franklin Jorge

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Revi o poeta Renato Caldas alguns poucos anos antes de sua morte que passou despercebida na capital do estado. Apenas um jornal fez um registro pobre de informações ou as requentava para dar alguma coisa aos leitores. Célebre por sua verve irreverente e cheia de vida, de uma certa forma já estava morto havia anos e esquecido em sua própria terra, conforme então me confessou sentado à mesa do chamado “reservado”, ao pé da escada, no velho Bar de João Nogueira, à Praça do Rosário.

Era o seu último refúgio de solitário, após uma vida de aventuras e peripécias. Todas as manhãs, das dez horas ao meio-dia, ali estava, sozinho, bebericando os restos da cerveja que restara do dia anterior. Cândida, filha única e herdeira de João Nogueira, homem reservado, atencioso e algo temperamental, pois afora sua escolhida clientela formada por proprietários rurais e comerciantes ricaços, não parecia dar trelas a qualquer um que aportasse em seu famoso estabelecimento comercial, misto de bar e confeitaria. Quando menino, era lã que eu comprava meus chocolates e guloseimas, e, minha avó, queijo do reino, manteigas, vinho tinto, cacau em pó, guaraná Champagne e biscoitos finos vendidos em latas decoradas que, quando vazias, eram disputadíssimas pelas mulheres do Estevão, que delas se serviam para guardar mantimentos.

Fui recebido por Cândida, que me conhecia desde menino e que se mostrou satisfeita de rever-me, pediu noticias e minha avó e recordou quanto minha mãe chamara a atenção da cidade por sua beleza e elegância. Nunca mais tive o prazer de vê-las, declarou, enquanto me conduzia até ao “reservado”, após consultar o poeta se podia receber-me. Ele não gosta de ser incomodado e me deu ordens para não levar ninguém à sua mesa. Não bebe mais, apenas molha os lábios com a cerveja. Uma garrafa dá para dois dias e ainda sobra…

Cândida informa que o poeta vive doente e não gosta de receber visitas. Todos os dias vem ao bar, mas recolhido ao pé da escada, para não ser visto e nem botar conversa fora. Nos últimos anos, bebeu na companhia de Lô, que lhe conheceu, e para dar-lhe alguma alegria promoveu a publicação de um livrinho, Ao pé da escada, em sua homenagem, que foi o seu único presente. Único, mas de coração… Fiquei emocionada como Seu Renato ficou… Ainda tenho um exemplar que vou lhe dar como lembrança deste dia.

Seu Renato, disse, ao abrir a porta do reservado. Veja quem está aqui… Veio de Natal para conversar com o senhor… Ao ver-me, mostrou-se o poeta surpreso e satisfeito, fazendo menção de levantar-se para cumprimentar-me, porém o dissuadi, enquanto ele balbuciava, Como vê, sou hoje um samba acabado… Uma sombra que cumpre o ritual de estar aqui todos os dias, bebericando minha cerveja, sozinho, pensamento na vida que podia ter sido e não foi.

Fazia um calor infernal enquanto ele molhava os lábios com a cerveja choca e sem espuma. Notei nas comissuras de seus lábios um pouco de saliva que ele limpava, de quando em vez, com o dorso da mão engelhada e chuviscada de manchas senis. A velhice, como vê, é uma merda…, suspirou.

Ressentia-se o velho poeta da indiferença ou da desafeição de seus conterrâneos. Sabia que seus versos e boutades corriam de boca em boca, em reuniões de amigos e mesas de bar, mas para todos essa gente ele já estaria morto, desde que se recolhera em sua velhice à solidão e ao silencio. Somente Gena, nossa amiga e admiradora de seu talento, me visita às vezes, por amizade e caridade. Já não frequento mais o bate-papo em sua calçada, que ainda resiste, todas as noites, apesar da mudança dos costumes. Alcancei esse bar cheio de gente, agora quase mais ninguém vem aqui. Para mim é uma vantagem; não tenho de suportar certas pessoas.

Sua visita me surpreendeu. Principalmente o seu desejo de entrevistar-me, embora, nessa idade sofrendo todos esses achaques da velhice e a memória cansada, nada mais tenha a dizer. Minha vida passou, como passa tudo sobre a terra. Já não tenho memória ou me falta a vontade de lembrar o passado que me pesa como um fardo de cardeiros. Não, não tenho mais nada a dizer aos que ficam.

Curioso, acrescenta, é que justamente você, que não nasceu aqui, seja o primeiro jornalista interessado em entrevistar-me. Como um presente tardio de meus 80 anos que completei a algum tempo. O Assú, que teve em dez décadas mais de 100 jornais e deu ao jornalismo muitos jornalistas, como João Batista Machado e Celso da Silveira, para citar os vivos – que nunca se deram ao trabalho de entrevistar-me. Machado nunca me deu cartaz e Celso, quando me procurava, era para tirar de mim alguma coisa para rechear suas plaquetes…

Não, não tenho o que lhe dizer que possa merecer uma página de jornal. Não se dê a esse esforço… Já está na hora de meu almoço. Fausta está me esperando… Fausta está me esperando…

[Continua depois]